quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Xeque-sursis


Quando o vazio já constitui a maior parte do nosso ser, eis que sabemos que já  vivemos o suficiente. Não que tenhamos feito o suficiente, experimentado o suficiente ou visto o suficiente, significa que é vão insistir, o que podia ter sido feito, foi feito, o restante é espera. No ponto de ônibus, à tarde, talvez já noite, o horário de verão sempre me engana, perguntava-me se alguma vez o ônibus passaria. Nos feriados, o tempo de espera era sempre maior, mas no Natal, era razoável pensar que não viria mesmo. Se alguém decide esperar o ônibus por mais de uma hora, há algumas hipóteses possíveis para tanto: ou não tem mesmo pressa de chegar ao seu destino, andar ou utilizar outra forma de transporte não é viável ou desistir de ir não é uma opção. Não era o caso aqui, pois embora não tivesse pressa tampouco tinha uma razão para ficar. Poderia andar até o destino, mas o destino era uma ideia vaga e incerta, que levara um bom tempo para impor-se às intenções. E penso que neste ponto convém abandonar a primeira pessoa, não apenas pelo embaraço de prosseguir o relato como autor e agente dos fatos, mas porque quero. Assim foi que ele, o personagem, o esperançoso, o aguardante, esperou por duas horas e vinte minutos. Ao seu destino não nos dedicaremos. À sua história menos ainda, pois não difere da de todos os outros personagens que esperam um ônibus por duas horas e vinte no feriado de Natal. São mortos vivos, se não natimortos.
O que nos interessa aqui é a espera em si. Aquele lapso em que ficou só com sua irrefreável mente, durante os quais passaram dezoito carros e quatro transeuntes, todos sós e munidos de um aparelho celular do qual não tiravam a vista. Pensou também em aplacar a espera jogando xadrez no celular. Era um péssimo jogador, tinha boas ideias, mas a sua incapacidade de visualizar o todo fazia-o sempre sacrificar embalde uma rainha ou uma torre a custa de um reles peão do adversário, o qual só não sorria por tratar-se de um frio processador e o seu implacável banco de dados de movimentos possíveis. De qualquer maneira, o celular estava descarregado (havia já três dias, mas só agora o notava) e não jogou. Corroborou consigo mesmo que o celular ocupava hoje um papel fundamental na domesticação das massas. As pessoas já não ficavam a sós consigo mesmas, detestavam a sua própria companhia, uma necessidade exasperante de estar constantemente acompanhado impulsionava a proliferação de antenas por pastos de vacas e praias desertas, já não importava deslumbrar-se com as dunas de Natal, era preciso narrá-lo em tempo real e ao narrá-lo em tempo real, torná-lo tão irreal como toda a narração. Mas era compreensível que fosse assim, a julgar por sua própria experiência, não existia pior companhia que si mesmo. Era absolutamente enfadonho ou, antes, irritante. Já não se suportava havia muito tempo, mas fazia pouco que chegara claramente a tal conclusão, era uma companhia insuportável da qual não conseguia livrar-se um segundo sequer. O pior era suportar os seus próprios sermões politicamente corretos, quer fosse sobre a incivilidade dos motoristas em sua recalcitrância em frear nas proximidades da faixa de pedestre ou sobre a passividade dos próprios pedestres a quem gostava de chamar de pedestres-batatas, plantados na calçadas relutavam em mover-se até que não houvesse um veículo a pelo menos 279 km; quer fosse sobre as inúmeras iniquidades da nossa sociedade, a discriminação que negros, mulheres, bichas, doentes, deficientes, deformados, gordos, anões, baixos, carecas, desdentados, sujeitos com cicatrizes de traqueostomia, vesgos, vegetarianos, argentinos, bahianos, cearenses, massagistas, travestis, transexuais e afins, sofrem diariamente nas ruas da nossa cidade, ou qualquer outra causa perdida a priori por ser de interesse público e, portanto, de ninguém.  Mas pior que os inúmeros tratados irrefutáveis que encheriam volumes capazes de adornar as mais pomposas e harvardianas bibliotecas tupiniquins, eram os sábios conselhos que disparava nas mais diferentes situações, desde a necessidade de comer chia a fim de evitar o aumento do colesterol à recomendação de prudência na hora de escolher algum prato no restaurante. Enfim, não havia companhia mais insuportável que si mesmo e se os demais, à sua semelhança, tivessem fardos similares, não seria condenável que recorressem ao celular para escapar dela. Mas não estava certo que os demais padecem da mesma sina, já não estava certo que houvesse outros.
Andara lendo um livro de filosofia que discutia as ideias de Platão, a coisa em si de Kant, a vontade de Schopenhauer, e sentia-se à vontade para dizer que não tinha ideia mais de qual era a coisa que em si pudesse ser coisa. Cada vez que via um passar um ser humano, olhava-o de cima abaixo e em seguida voltava-se rapidamente para trás a fim de flagrar uma sarcasta fogueira, sempre movendo-se às suas costas com tremenda intensidade, projetando falsas sombras sobre cada superfície que se lhe opunha. Mas se o ser humano fosse uma mulher, esquecia-se um pouco da fogueira, perdia também a voz e engasgava-se com as galantarias que proferiria se fosse outra pessoa e não tivesse aquela insuportável companhia de si mesmo a aconselhar-lhe prudência. Talvez tivesse tempo de atravessar a rua e comprar uma água, sua boca secava e nesta época a sua rinite costumava atacar por causa do pólen das plantas, tinha a convicção de que beber água a cada quinze minutos o livraria da rinite. Mas hesitava por medo de perder o ônibus e ter que esperar outras duas horas, outras duas horas de sursis. Por mera associação direta, sede – água – chuva, lembrou que era época de pancadas de chuva no fim da tarde, olhou para o céu, mas não havia nuvens que representassem qualquer ameaça. A única ameaça, esta bem mais concreta e iminente era a horrível pomba que estava no fio acima da sua cabeça, não era exatamente em cima, mas sabemos que uma leve brisa é capaz de transportar as fezes desses ratos alados até as incautas cabeças de transeuntes e aguardantes. Lera certa vez sobre uma doença transmitida pelas fezes das pombas que fazia o crânio apertar o cérebro. Uma doença raríssima, daquelas cujas estatísticas envolvem o uso de pelo menos seis zeros, mas toda a vida julgara-se o tipo adequado para dar realidade a tais estatísticas. Cada vez que ouvia alguém dizer um em um milhão, imediatamente sentia-se apontado pelos dedos agudos do destino. Até podia sentir os olhares pesarosos dos observadores, “um em um milhão, aí está o pobre coitado, logo eu, logo eu, alguém tinha que ser, meu filho, dizia o sábio conselheiro já citado, alguém tinha que ser, considere-se um herói, o salvador das estatísticas, o herói anônimo que salva e garante a existência dos outros novecentos e noventa e nove mil novecentos e noventa e nove indivíduos, viva, alvissaras, louvores!”. Quase era capaz de reconfortar-se. Cague-me, pomba, pelo bem dos novecentos e noventa e nove mil novecentos e noventa e nove cidadãos não cagados. Mas a pomba não cagou e, na verdade, a ideia de ficar cagado por uma pomba justo aquele dia não o agradou. Fez alguns sons, tentando imitar um arrulho, mas logo sentiu que além de soar absolutamente errado, era ridículo supor que um arrulho pudesse espantá-la. Afinal, pareciam seres sociáveis e a presença de um igual decerto não a espantaria. Um gato! Gato sabia imitar à perfeição. Quando criança tivera mais de cem gatos e muitas madrugadas acordara ouvindo as brigas dos gatos por gatas ciosas. Era um som semelhante à voz do pato Donald, um som arranhando a garganta. Começou a reproduzir o som com a habitual maestria, mas aparentemente a pomba não temia os gatos, sabia que não eram capazes de voar, e, assim, prosseguiu impassível no fio, embora contrita, afortunadamente. A ideia de espantar a pomba ganhara já contornos de incipiente obsessão, contudo, e apanhou um pedra pequena no chão, pois não queria feri-la, o sábio conselheiro acompanhante de todas as horas já lançara, no instante mesmo em que se decidira por apanhar a pedra, a discursar sobre os direitos dos animais, o respeito à vida, afinal, os animais cagam, não é culpa da pomba se o seu intestino precisa funcionar e você está embaixo dela, os incomodados que se mudem, as pombas talvez estivessem aqui antes, quem saberá? Poderia argumentar que não, que os pombos só estão ali, porque nós estamos ali, são parasitas que vivem dos nossos restos ou do resto de nós, mas preferiu não contrariá-lo, para não iniciar uma interminável batalha retórica acerca da primazia sobre o planeta, a evolução das espécies, moralidade da vida e moralidade humana, et cetera. Apanhou, enfim, uma pedra pequena que pela sua falta de peso ganhou qualquer direção, passando longe do inamovível alvo. Explicou ao seu insuperável conselheiro que precisava algo maior, mas que sua intenção não era ferir a ave, apenas espantá-la daquela posição, como fazia com a rainha do adversário quando tentava ocupar a casa d4. Era imperioso expulsá-la antes que comesse a sua torre. A pedra maior foi mais eficiente e passou bem próxima da pomba que apenas arrulhou. Na terceira tentativa a acertou no estômago e ela, indignada, mas ainda sem mover-se, disparou uma rajada de fezes que por pouco não acertou em cheio a sua cabeça. Se aquela pomba era apenas uma projeção de uma ideia, era uma péssima ideia projetá-la logo ali, mas a pomba finalmente, depois de alvejar o seu rival alçou voo.
Tranquilizou-se, enfim, e lembrou-se da água, a sua sede aumentara com tamanha batalha. Mas não podia sair naquele instante. Havia uma farmácia 24 horas a menos de 70 metros, mas era distância suficiente para perder o ônibus caso viesse. Mas a sede já era tanta, que nem mesmo a ideia de uma nova espera parecia ser capaz de dissuadi-lo de buscar água. Começou a correr, como se apressar-se pudesse fazer alguma diferença. Entrou na farmácia, pegou a garrafa na geladeira e deixou uma nota de dez reais sem esperar pelo troco. O rapaz do caixa, no entanto, começou a persegui-lo com as moedas  chacoalhando na mão, senhor, senhor, o seu troco. Mas já podia ver ao longe o ônibus e não deu atenção ao rapaz que, no entanto, não desistia, só parando quando uma pomba cagou-lhe a cabeça. Atirou as moedas na pomba com força e voltou para a farmácia proferindo irreproduzíveis impropérios. Já o nosso personagem, chegou a tempo ao ponto e quando o ônibus já estava a menos de cinco metros, atirou-se na sua frente e, fechando os olhos, imaginou o choque, esperando o fim, desejando o fim, o fim do sursis, a sentença final. “Mate-me, ó, veículo desenfreado, leve-me por fim ao meu destino, aquele que hoje é meu, mas um dia será o seu, será da pomba, do rapaz da farmácia, destino que talvez tenha sido o início, mate-me!”. O personagem, esperou de olhos fechados que decorressem aqueles intermináveis segundos que se somavam aos outros 7200 anteriores e, por que não, aos mais de 2.333.664.000 que já esperara. Ó sursis! Sursis? Já havíamos dito que o nosso personagem era um péssimo enxadrista, pois na hora de traçar a sua estratégia, tanto ofuscava-lhe a proximidade do rei adversário que perdia a visão do todo, era incapaz de ver o infenso peão  incrédulo diante da majestade da dama e que, se falasse, perguntaria “sério?”. Assim fora que esqueceu que um ponto de ônibus era justamente o pior lugar para jogar-se diante de um ônibus. Abriu os olhos e, em vez da face incógnita ou inarrável face da besta negra e o seu foice implacável, viu apenas a cara do motorista-peão, impaciente. “Vai subir ou não?”, perguntou-lhe secamente. “Vou”. Subiu, mas aos quinhentos metros desceu, o dinheiro para a passagem ficara na calçada, atirado sobre a pomba pelo rapaz da farmácia. Voltou para casa, ligou o computador e tentou mais uma vez a sorte em uma partida de xadrez contra o seu computador, a quem apelidava “Dip blu”.