Xeque-sursis
Quando o vazio já constitui a maior parte do nosso ser, eis
que sabemos que já vivemos o suficiente.
Não que tenhamos feito o suficiente, experimentado o suficiente ou visto o
suficiente, significa que é vão insistir, o que podia ter sido feito, foi
feito, o restante é espera. No ponto de ônibus, à tarde, talvez já noite, o
horário de verão sempre me engana, perguntava-me se alguma vez o ônibus
passaria. Nos feriados, o tempo de espera era sempre maior, mas no Natal, era
razoável pensar que não viria mesmo. Se alguém decide esperar o ônibus por mais
de uma hora, há algumas hipóteses possíveis para tanto: ou não tem mesmo pressa
de chegar ao seu destino, andar ou utilizar outra forma de transporte não é
viável ou desistir de ir não é uma opção. Não era o caso aqui, pois embora não
tivesse pressa tampouco tinha uma razão para ficar. Poderia andar até o
destino, mas o destino era uma ideia vaga e incerta, que levara um bom tempo
para impor-se às intenções. E penso que neste ponto convém abandonar a primeira
pessoa, não apenas pelo embaraço de prosseguir o relato como autor e agente dos
fatos, mas porque quero. Assim foi que ele, o personagem, o esperançoso, o
aguardante, esperou por duas horas e vinte minutos. Ao seu destino não nos
dedicaremos. À sua história menos ainda, pois não difere da de todos os outros
personagens que esperam um ônibus por duas horas e vinte no feriado de Natal.
São mortos vivos, se não natimortos.
O que nos interessa aqui é a espera em si.
Aquele lapso em que ficou só com sua irrefreável mente, durante os quais
passaram dezoito carros e quatro transeuntes, todos sós e munidos de um
aparelho celular do qual não tiravam a vista. Pensou também em aplacar a espera
jogando xadrez no celular. Era um péssimo jogador, tinha boas ideias, mas a sua
incapacidade de visualizar o todo fazia-o sempre sacrificar embalde uma rainha
ou uma torre a custa de um reles peão do adversário, o qual só não sorria por
tratar-se de um frio processador e o seu implacável banco de dados de
movimentos possíveis. De qualquer maneira, o celular estava descarregado (havia
já três dias, mas só agora o notava) e não jogou. Corroborou consigo mesmo que
o celular ocupava hoje um papel fundamental na domesticação das massas. As
pessoas já não ficavam a sós consigo mesmas, detestavam a sua própria
companhia, uma necessidade exasperante de estar constantemente acompanhado
impulsionava a proliferação de antenas por pastos de vacas e praias desertas,
já não importava deslumbrar-se com as dunas de Natal, era preciso narrá-lo em
tempo real e ao narrá-lo em tempo real, torná-lo tão irreal como toda a
narração. Mas era compreensível que fosse assim, a julgar por sua própria
experiência, não existia pior companhia que si mesmo. Era absolutamente
enfadonho ou, antes, irritante. Já não se suportava havia muito tempo, mas
fazia pouco que chegara claramente a tal conclusão, era uma companhia
insuportável da qual não conseguia livrar-se um segundo sequer. O pior era
suportar os seus próprios sermões politicamente corretos, quer fosse sobre a
incivilidade dos motoristas em sua recalcitrância em frear nas proximidades da faixa
de pedestre ou sobre a passividade dos próprios pedestres a quem gostava de
chamar de pedestres-batatas, plantados na calçadas relutavam em mover-se até
que não houvesse um veículo a pelo menos 279 km; quer fosse sobre as inúmeras
iniquidades da nossa sociedade, a discriminação que negros, mulheres, bichas,
doentes, deficientes, deformados, gordos, anões, baixos, carecas, desdentados,
sujeitos com cicatrizes de traqueostomia, vesgos, vegetarianos, argentinos,
bahianos, cearenses, massagistas, travestis, transexuais e afins, sofrem
diariamente nas ruas da nossa cidade, ou qualquer outra causa perdida a priori
por ser de interesse público e, portanto, de ninguém. Mas pior que os inúmeros tratados irrefutáveis
que encheriam volumes capazes de adornar as mais pomposas e harvardianas
bibliotecas tupiniquins, eram os sábios conselhos que disparava nas mais
diferentes situações, desde a necessidade de comer chia a fim de evitar o
aumento do colesterol à recomendação de prudência na hora de escolher algum
prato no restaurante. Enfim, não havia companhia mais insuportável que si mesmo
e se os demais, à sua semelhança, tivessem fardos similares, não seria
condenável que recorressem ao celular para escapar dela. Mas não estava certo
que os demais padecem da mesma sina, já não estava certo que houvesse outros.
Andara lendo um livro de filosofia que discutia as ideias de Platão, a coisa em
si de Kant, a vontade de Schopenhauer, e sentia-se à vontade para dizer que não
tinha ideia mais de qual era a coisa que em si pudesse ser coisa. Cada vez que
via um passar um ser humano, olhava-o de cima abaixo e em seguida voltava-se
rapidamente para trás a fim de flagrar uma sarcasta fogueira, sempre movendo-se
às suas costas com tremenda intensidade, projetando falsas sombras sobre cada
superfície que se lhe opunha. Mas se o ser humano fosse uma mulher, esquecia-se
um pouco da fogueira, perdia também a voz e engasgava-se com as galantarias que
proferiria se fosse outra pessoa e não tivesse aquela insuportável companhia de
si mesmo a aconselhar-lhe prudência. Talvez tivesse tempo de atravessar a rua e
comprar uma água, sua boca secava e nesta época a sua rinite costumava atacar
por causa do pólen das plantas, tinha a convicção de que beber água a cada
quinze minutos o livraria da rinite. Mas hesitava por medo de perder o ônibus e
ter que esperar outras duas horas, outras duas horas de sursis. Por mera
associação direta, sede – água – chuva, lembrou que era época de pancadas de
chuva no fim da tarde, olhou para o céu, mas não havia nuvens que
representassem qualquer ameaça. A única ameaça, esta bem mais concreta e
iminente era a horrível pomba que estava no fio acima da sua cabeça, não era
exatamente em cima, mas sabemos que uma leve brisa é capaz de transportar as
fezes desses ratos alados até as incautas cabeças de transeuntes e aguardantes.
Lera certa vez sobre uma doença transmitida pelas fezes das pombas que fazia o
crânio apertar o cérebro. Uma doença raríssima, daquelas cujas estatísticas
envolvem o uso de pelo menos seis zeros, mas toda a vida julgara-se o tipo
adequado para dar realidade a tais estatísticas. Cada vez que ouvia alguém
dizer um em um milhão, imediatamente sentia-se apontado pelos dedos agudos do
destino. Até podia sentir os olhares pesarosos dos observadores, “um em um
milhão, aí está o pobre coitado, logo eu, logo eu, alguém tinha que ser, meu
filho, dizia o sábio conselheiro já citado, alguém tinha que ser, considere-se
um herói, o salvador das estatísticas, o herói anônimo que salva e garante a
existência dos outros novecentos e noventa e nove mil novecentos e noventa e
nove indivíduos, viva, alvissaras, louvores!”. Quase era capaz de
reconfortar-se. Cague-me, pomba, pelo bem dos novecentos e noventa e nove mil novecentos
e noventa e nove cidadãos não cagados. Mas a pomba não cagou e, na verdade, a
ideia de ficar cagado por uma pomba justo aquele dia não o agradou. Fez alguns
sons, tentando imitar um arrulho, mas logo sentiu que além de soar
absolutamente errado, era ridículo supor que um arrulho pudesse espantá-la.
Afinal, pareciam seres sociáveis e a presença de um igual decerto não a
espantaria. Um gato! Gato sabia imitar à perfeição. Quando criança tivera mais
de cem gatos e muitas madrugadas acordara ouvindo as brigas dos gatos por gatas
ciosas. Era um som semelhante à voz do pato Donald, um som arranhando a
garganta. Começou a reproduzir o som com a habitual maestria, mas aparentemente
a pomba não temia os gatos, sabia que não eram capazes de voar, e, assim,
prosseguiu impassível no fio, embora contrita, afortunadamente. A ideia de
espantar a pomba ganhara já contornos de incipiente obsessão, contudo, e
apanhou um pedra pequena no chão, pois não queria feri-la, o sábio conselheiro
acompanhante de todas as horas já lançara, no instante mesmo em que se decidira
por apanhar a pedra, a discursar sobre os direitos dos animais, o respeito à
vida, afinal, os animais cagam, não é culpa da pomba se o seu intestino precisa
funcionar e você está embaixo dela, os incomodados que se mudem, as pombas
talvez estivessem aqui antes, quem saberá? Poderia argumentar que não, que os
pombos só estão ali, porque nós estamos ali, são parasitas que vivem dos nossos
restos ou do resto de nós, mas preferiu não contrariá-lo, para não iniciar uma
interminável batalha retórica acerca da primazia sobre o planeta, a evolução
das espécies, moralidade da vida e moralidade humana, et cetera. Apanhou,
enfim, uma pedra pequena que pela sua falta de peso ganhou qualquer direção,
passando longe do inamovível alvo. Explicou ao seu insuperável conselheiro que
precisava algo maior, mas que sua intenção não era ferir a ave, apenas
espantá-la daquela posição, como fazia com a rainha do adversário quando
tentava ocupar a casa d4. Era imperioso expulsá-la antes que comesse a sua torre.
A pedra maior foi mais eficiente e passou bem próxima da pomba que apenas
arrulhou. Na terceira tentativa a acertou no estômago e ela, indignada, mas
ainda sem mover-se, disparou uma rajada de fezes que por pouco não acertou em
cheio a sua cabeça. Se aquela pomba era apenas uma projeção de uma ideia, era
uma péssima ideia projetá-la logo ali, mas a pomba finalmente, depois de
alvejar o seu rival alçou voo.
Tranquilizou-se, enfim, e lembrou-se da água, a
sua sede aumentara com tamanha batalha. Mas não podia sair naquele instante. Havia
uma farmácia 24 horas a menos de 70 metros, mas era distância suficiente para
perder o ônibus caso viesse. Mas a sede já era tanta, que nem mesmo a ideia de
uma nova espera parecia ser capaz de dissuadi-lo de buscar água. Começou a
correr, como se apressar-se pudesse fazer alguma diferença. Entrou na farmácia,
pegou a garrafa na geladeira e deixou uma nota de dez reais sem esperar pelo
troco. O rapaz do caixa, no entanto, começou a persegui-lo com as moedas chacoalhando na mão, senhor, senhor, o seu troco.
Mas já podia ver ao longe o ônibus e não deu atenção ao rapaz que, no entanto,
não desistia, só parando quando uma pomba cagou-lhe a cabeça. Atirou as moedas
na pomba com força e voltou para a farmácia proferindo irreproduzíveis
impropérios. Já o nosso personagem, chegou a tempo ao ponto e quando o ônibus
já estava a menos de cinco metros, atirou-se na sua frente e, fechando os
olhos, imaginou o choque, esperando o fim, desejando o fim, o fim do sursis, a
sentença final. “Mate-me, ó, veículo desenfreado, leve-me por fim ao meu
destino, aquele que hoje é meu, mas um dia será o seu, será da pomba, do rapaz
da farmácia, destino que talvez tenha sido o início, mate-me!”. O personagem,
esperou de olhos fechados que decorressem aqueles intermináveis segundos que se
somavam aos outros 7200 anteriores e, por que não, aos mais de 2.333.664.000
que já esperara. Ó sursis! Sursis? Já havíamos dito que o nosso personagem era
um péssimo enxadrista, pois na hora de traçar a sua estratégia, tanto
ofuscava-lhe a proximidade do rei adversário que perdia a visão do todo, era
incapaz de ver o infenso peão incrédulo
diante da majestade da dama e que, se falasse, perguntaria “sério?”. Assim fora
que esqueceu que um ponto de ônibus era justamente o pior lugar para jogar-se
diante de um ônibus. Abriu os olhos e, em vez da face incógnita ou inarrável
face da besta negra e o seu foice implacável, viu apenas a cara do
motorista-peão, impaciente. “Vai subir ou não?”, perguntou-lhe secamente.
“Vou”. Subiu, mas aos quinhentos metros desceu, o dinheiro para a passagem
ficara na calçada, atirado sobre a pomba pelo rapaz da farmácia. Voltou para
casa, ligou o computador e tentou mais uma vez a sorte em uma partida de xadrez
contra o seu computador, a quem apelidava “Dip blu”.