sexta-feira, 31 de maio de 2013

O antiquado



Parei na frente da vitrine do antiquário e fiquei ali estagnado enquanto o tempo e os transeuntes passavam apressados como sempre. Pareciam não me notar, nem o tempo nem os transeuntes, não poderiam, naquele momento eu estava distante, estava presente demais para estar próximo deles. O objeto que me fizera parar foi um telefone de disco cinza, idêntico ao que eu tinha na minha infância. Depois de tudo, depois de tanto, depois de nada, parecia como nada, quase quarenta anos num relance, enquanto o olhar distraído fitava o futuro, imaginando que haveria tempo para ser futuro, depois de tudo isso e quase nada, minha memória de infância era passado, era relíquia, era objeto de curiosidade para as iPeoples... 392680... Esse era o número, o número de meu primeiro telefone. Depois mudou, incorporou um novo número e depois mais outro, mas 392680 seria eternamente o primeiro número do telefone cinza de disco. Talvez as iPeoples que passavam e se distraíam da sua distração a ponto de por um instante me observarem, pensariam se tratar de um fetiche estranho por um objeto antigo e nada mais, até talvez o comentassem no facebook, talvez tenham tirado a foto do sujeito estranho antiquado parado atônito na frente da vitrine do antiquário sujeito. 39 pessoas já teriam comentado, 26 ignorado, 80 curtiram... O telefone provavelmente funcionasse ainda, por um instante pensei em comprá-lo, mas desisti, desisti ao imaginar que custaria algo como 19 libras, o 392680 não poderia custar 39 reais, na época os seus pais pagaram o equivalente a 1000 dólares em cruzeiros ou cruzados ou cruzados novos.  Era um bem, um bem caro e esperado, os vizinhos acorreram para ver a sua chegada, agora poderia ligar para Flávia, Ricardo, Cristiane, todos! Mas com moderação, nada de tagarelices, pois tais luxos não eram permissíveis. Tínhamos telefone, enfim. Nesse mesmo dia, a inauguração foi uma ligação para o restante da família, em Buenos Aires, de quem o destino havia nos separado abruptamente e a quem a Telesp ia agora nos aproximar um pouco. Claro, falávamos rápido, pois a conta era altíssima, “hablá rápido, que es caro”, y entre verbos apressados falava-se sobre trivialidades como tempo, algumas notícias sobre a política, novidades das nossas vidas, mas a saudade era o único termo real impresso em cada palavra.  Terminávamos a conversa emocionados, e muitas vezes os meus pais contavam sobre como era muito mais difícil antes, ainda em Bariloche, quando meu pai precisava pedir a ligação à operadora e esperar às vezes até quatro horas para que a chamada se completasse. Em quatro horas, mais 80 iPeoples teriam curtido o antiquado da vitrine do antiquário. Podíamos pedir pizza, como tantos outros e de fato pedíamos sempre no mesmo lugar, o Alô Pizza, cujo dono tinha os filhos estudando na mesma escola a qual íamos minha irmã e eu e curiosamente ambos eram apelidados de Pizza. A entrega era feita em uma Caravan cor creme, sempre a mesma, sempre catupiry... Eu talvez fosse quem menos usava o 392680, minha irmã, mais adolescente que eu era quem sempre devia desligar o telefone contrariada obedecendo as ordens dos meus pais. Eu tinha a bola. A ordem só se inverteu numa época em que conheci uma garota que morava na parte 2. A parte 2 era uma parte da cidade universitária que ficava um pouco mais afastada, ligada por algumas avenidas e subidas íngremes que dificultavam o percurso da bicicleta, eram pouco mais de 3 quilômetros, mas naquela época ir à parte 2 era como cruzar fronteiras intransponíveis. Eu a conheci lá em uma festa e trocamos o número de telefone, durante quase um mês falamos insistentemente ao telefone, prometendo-nos amores eternos e telefônicos. Mas a fronteira intransponível superou aquela paixão repentina e aos poucos fomos nos distanciando, o disco resistia aos dedos e aos poucos deixamos de nos discar... O número que mais disquei na minha vida, no entanto, certamente foi o 130: “Telesp informa 20 horas e 32 minutos, temperatura 19 graus”. Possuir aquela informação era aceder a um poder especial, ninguém poderia discutir a hora com aquele que ajustasse o seu relógio com a Telesp, pois era o argumento derradeiro de qualquer discussão sobre a hora certa, especialmente na época do réveillon. Ter a hora certa garantia uma entrada de ano pontualíssima. Era quase uma obsessão ajustar os meus relógios com a Telesp, só refreada pelo lembrete constante que minha mãe fazia questão de nos fazer sobre o ônus de tal ligação. Antes, porém, que a minha memória me levasse a novos recônditos, um bipe do meu celular me trouxe de volta ao presente. Era uma mensagem de um “amigo” do facebook recebida no smartphone, comentando sobre uma foto que vira no mural de outro amigo, uma foto de um antiquado sujeito parado na frente de um antiquário. Dizia ainda que o sujeito se parecia comigo e compartilhava a foto para que eu a visse. Curti.

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