sexta-feira, 11 de junho de 2010

Memórias de Marcondes

Penetrava-lhe a carne branda e morna, que se contorcia como tomada por infindáveis punções, e aos poucos abandonei o ímpeto que me levava sempre adiante sem uma razão qualquer. A umidade luxuriosa me tomou por inteiro e pude sentir as gotas daquele fluido pegajoso deslizarem por mim até perder-me no escuro e na calma. As lentas pulsações aceleraram-se bruscamente, mas aos poucos sentia que arrítmicas e caóticas tornavam-se cada vez mais escassas. Logo eram nada ou quase nada. Ao redor, ouvia-se a turba e o tumulto, mas aqui na carne branda tudo era quietude (já não pulsava). E naquela tranquilidade penumbrosa e úmida senti por primeira vez o forte golpe da nostalgia, dos tempos que livre cortava os céus, imune a qualquer olhar, esperançoso de jamais parar, ainda aturdido com o estampido antes da luz. A luz, a princípio, ofuscou-me, mas aos poucos pude ver os pássaros lentos que atrás deixava. A liberdade, jamais conceito, jamais palavra, não ouso tentar descrevê-la, gozei por perenes, mas intensos instantes. Não me viam, mas eu as via. Sentadas em bancos de praças, alimentando ratos alados; à beira do cais, o beijo furtado, a multidão domesticada dos ônibus, e eu, livre... Livre até o último instante, ouvia a conversa dos corpos, um dizia que não se preocupasse, que as coisas aconteceriam, era uma questão de tempo, precisava apenas de tempo. E sem mais tempo, o choque inevitável, eu desejava continuar, mas a carne branda se abriu à minha frente.

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