sábado, 2 de outubro de 2010

Descoberta

Não foi com pouca surpresa que compreendi minha descoberta e hesitei por algum tempo antes de decidir-me a compartilhá-la com os demais. Foi só quando deixei de temer eventuais reproches e, principalmente, de considerá-la, eu mesmo, um fato que transigia sobre os limiares da lucidez, que aceitei dá-la à luz. Por outra parte, corro o risco de ser, quão bom e velho cônjuge, o “último a saber”, e vir a falar da novidade quando já todos me sobreolham por cima dos ombros como quem dá as boas-vindas ao inevitável. Mas mesmo correndo ambos os riscos, dos reproches e questionamentos acerca de minha lucidez como o de desempenhar o papel do ocidental alvissareiro que anuncia a pólvora aos chineses, proponho-me a descrever minha recente descoberta sem eufemismos e com toda a clareza que me seja permitida. Descobri, assim sem mais, que não sou um. Sou vários. Sempre pensei que eu poderia ser várias pessoas e, em termos psicanalíticos, diria que sempre me soube capaz de assumir diversas personas em circunstâncias diferentes. Mas o que jamais havia podido conceber até aquele momento é que várias pessoas pudessem ser eu, revezando-se em tarefas diurnas e noturnas, sem descanso, aceitando as hercúleas missões do dia-a-dia. Embora suspeitasse havia muito que meus passos soavam um tanto multímodos, foi somente enquanto esperava por Ilda, observando algo distraído meu próprio reflexo na vitrine da loja de calçados, que comecei a compreender. Olhei-me bem na vitrine e não me reconheci. Não digo um reconhecimento físico ou fisionômico, era meu corpo, bem o sabia, meu rosto e meus olhos que me devolviam a chama que desprendiam sobre o luzente vidro. Como num flagrante único, percebi que ele (eu) descansava e preparava-se para deixar-me, a troca devia ser rápida, mas por um descuido, desses que se justificam em 35 anos de intenso labor, não esperou que voltasse a cabeça para a rua. Talvez seu descuido era proporcional a minha habitual distração. Pouco observador, poderiam trocar-me o manequim do escaparate que não o notaria. Desta vez, porém, o seu (meu) descuido foi demasiado perceptível, suspeito que outros transeuntes talvez o tenham notado, mas logo enterrado no imenso buraco negro do “não visto” à falta de maiores certezas. Eu mesmo estive bastante tentado a fazê-lo, não fosse o fato de sair instantes depois da mesma loja com um “sapatênis” que até aquele momento me parecera espantoso. Somente o estado de atenção alterado despertado pelo seu (meu) gesto descuidado no reflexo da vitrine me permitiria observar tal discrepância de sentimentos em relação ao calçado. A partir de então, cada gesto dele (meu) passaria a ser rigorosamente vigiado. Não me surpreenderia, por exemplo, ao desfrutar de uma salada de mozarela de búfala ricamente temperada com azeite de oliva no Sal Doce naquele mesmo dia. O azeite de oliva era, no mais das vezes, intragável para meu gosto. Nunca cheguei a saber quem é o responsável pelas contínuas trocas de turnos, não chegara a tanto minha incipiente descoberta, mas caso o soubesse, encaminhar-lhe-ia uma veemente reclamação, pois julgo, em meu metódico entender, que haveria de ter mais cuidados no recrutamento para evitar semelhantes discrepâncias, um eu ao fim de tarde jamais poderia deliciar-se, como o fazia agora, com uma porção de mozarela temperada com azeite de oliva. Desconfio, porém, que estes sujeitos não se permitem deixar qualquer ponto sem seu devido nó, e se descuidam de um aspecto tão vital, têm lá seus motivos. Provavelmente a população humana atingiu índices tão elevados, cinco bilhões mais os chineses, que a rotatividade requer contingentes desproporcionais e não se podem ater a detalhes tão olivais para designar as prementes funções. Ou, então, fiam-se tanto de nossa apoucada atenção, tão comprometida com os afazeres cotidianos que se despreocupam em relação a picuinhas mais prosaicas. Tendo a crer, contudo, que a dimensão do contingente parece ser a mais razoável das hipóteses, pois não são amadores, já o dissemos, e se Ilda, ao meu lado, não se espantou com minha escolha pela mozarela de búfala, certamente se devia a uma perfeição matemática que combinava o par Ilda-Eu com inexaurível precisão. Ilda naquele momento era a Ilda habituada a sua (minha) preferência por azeite de oliva. Se lembrarmos, no entanto, que as relações podem envolver mais pessoas que um casal entediado no fim da tarde, comendo mozarela de búfala – poderia ser um grupo de estudos com cinco alunos, que se dirá de uma festa com inúmeros convidados, penetras e até chineses – poderemos conceber a monstruosidade da lógica combinatória que requer a organização de tais plantéis.
Ilda não se espantou com meu pedido e isto apenas confirmava minha descoberta. Não havia nada a fazer a não ser espreitar por novos descuidos, quem sabe eu poderia interpelar um deles (eu) num desses percalços, bastava muita atenção, e saber mais a respeito. Chegamos a casa e nem o banho quente foi capaz de desfazer o nó em meus ombros: era necessária muita atenção. O lado positivo era o cansaço; exaurido pelas atividades normais do dia-a-dia e com a tensão provocada pela contínua vigilância, não seria fácil dormir. Bastaria apagar a luz, proceder aos habituais boas-noites, virar-se para o lado oposto, fechar os olhos e deixar girar um instante a mente. Bastaria, mas não bastou. Apesar de todo aquele cansaço, meu corpo resistia a dormir, sentia-se enérgico e eu, tão esgotado. Exigia que me levantasse, o que não era de se espantar, ele (eu) acabava de chegar a seu turno, decerto enquanto fechava os olhos sob a água do chuveiro ou ao deitar-me e apagar a luz.

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1 Comentários:

Às 2 de outubro de 2010 às 20:20 , Blogger Luciane Godinho disse...

que legal, tava com saudades de ler teus escritos. gostei muito.

 

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