domingo, 4 de setembro de 2011

A tentativa de Silvério

Teria sido tão fácil organizar um esquema coerente, uma ordem de pensamento e vida, uma harmonia. Bastava a hipocrisia de sempre, elevar o passado ao valor de experiência, tirar partido das rugas na cara, do ar vivido que há nos sorrisos ou nos silêncios de mais de quarenta anos... - Cortázar (em algumas das 2000 páginas)


Silvério podia dizer que havia tentado, sim. Um esquema coerente e decente, 8 horas no escritório, funcionário exemplar. Aos poucos ganhou no escritório e perdeu-se nele, mas isto é capítulo nojoso, para outra ocasião. Silvério acelerou sua bicicleta, freou ao aproximar-se da esquina e decidiu empiná-la, de criança o fazia com tanta graça, por que não tentar. Levantou a roda dianteira uma vez e esta apenas respingou algumas gotas do chão molhado antes de pousar violentamente no asfalto. Não era tão difícil, lembrava. A segunda tentativa foi um pouco melhor e a roda despegou do solo algo mais que trinta centímetros e como a terceira costuma ser a definitiva, concentrou-se no movimento e arremeteu o guidão com o máximo de força. O galhardo movimento, para espanto dos motoristas que a seu lado esperavam o sinal trocar de cor, desenhou uma perfeita parábola no ar, até atingir os perfeitos noventa graus. No entanto, Silvério já não era tão leve e ágil e em vez de retornar a roda ao solo com a mesma galhardia continuou o movimento para deter-se unicamente quando suas nádegas se apoiaram sobre o empoçado asfalto que acrescentou uma interessante onomatopéia à já pitoresca cena. Sabendo-se observado, Silvério deitou-se na poça e levantou o bicíclico ser o mais que pôde, deixando-o paralelo ao seu corpo, formando, assim, uma interessante figura circense. O sinal abriu e os carros lentamente, ainda curiosos com a peripécia do ciclista, arrancaram, até que Silvério se erguesse e pudesse perceber que seu traje se encontrava absolutamente encharcado.

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