terça-feira, 22 de março de 2011

Citações

Há quem faça citações para legitimar uma opinião, para ilustrar um discurso, para preencher espaço em teses, etc.
Aqui faço esta citação, porque fui eu que escrevi o texto, mesmo que o Cortázar o tenha escrito vários anos antes, remexendo naquela tal bacia. Segue:

----------------------------------------------------------

Teria sido tão fácil organizar um esquema coerente, uma ordem de pensamento e vida, uma harmonia. Bastava a hipocrisia de sempre, elevar o passado ao valor de experiência, tirar partido das rugas na cara, do ar vivido que há nos sorrisos ou nos silêncios de mais de quarenta anos [ou quase]. Depois, a gente colocava um paletó azul, penteava as têmporas prateadas [últimos redutos filíferos] e entrava em exposições de pintura, na Sade e no Richmond, reconciliado com o mundo. Um ceticismo discreto, um ar de estar de volta, uma entrada cadenciosa na maturidade, no matrimônio, no sermão paterno na hora do churrasco ou do boletim escolar insatisfatório. Digo isso porque eu vivi muito. Eu que viajei tanto [nem tanto]. Quando eu era jovem. São todas iguais, sou eu quem está dizendo. Falo por experiência, meu filho. Você ainda não conhece a vida.
E tudo isso tão ridículo e gregário podia ser pior ainda em outros planos, na meditação ameaçada pelos idola fori, as palavras que falseiam as intuições, as petrificação simplificadoras, os cansaços nos quais lentamente vamos tirando do bolso do paletó a bandeira de rendição. Podia ocorrer que a traição se consumasse em uma perfeita solidão, sem testemunhas nem cúmplices: mão com mão, acreditando estar além dos compromissos pessoais e dos dramas dos sentidos, além da tortura ética de saber-se ligado a uma raça ou pelo menos um povo e uma língua. Na mais completa liberdade aparente, sem ter que prestar contas a ninguém, abandonar o jogo, sair da encruzilhada e meter-se em qualquer um dos caminhos da circunstâncias, proclamando-o o necessário e o único. A Maga era um desses caminhos, a literatura era outro (queimar imediatamente o caderno, mesmo que Gekrepten retorcesse as mãos), a preguiça era outro e a meditação completamente em vão era outro. Parado em frente a uma pizzaria de Corriente, mil trezentos e algo, Oliveira se fazia as grandes perguntas: “Então, devemos ficar como o cubo da roda na metade da encruzilhada? Para que serve saber ou pensar saber que cada caminho é falso se não o caminhamos com um propósito que já não seja o próprio caminho? Não somos Buda, pô, aqui não há árvores para sentar-se na postura de lótus. Vem um tira e te dá uma multa.”
Caminhar com um propósito que já não seja o próprio caminho.

0 Comentários:

Postar um comentário

Assinar Postar comentários [Atom]

<< Página inicial