O fardo do naturalismo
Assisti recentemente a uma oficina de
dramaturgia com X. Após as tradicionais apresentações de cada participante, o
palestrante deu início a sua aula. Começa, “como não poderia ser
diferente", dizendo que uma peça de teatro deve ter conflito, que sem este
não há drama, ação. Ok. Diz que ouve sempre as pessoas dizerem que devemos
escrever somente sobre o que conhecemos, mas que ele discorda, pois nesse caso
todas as peças teriam um só personagem, o próprio autor. Logo diz que os
personagens da peça devem ter lacunas, isto é, uma incompletude que os impede
de ser perfeitos. Para tanto, começa a mostrar suas próprias manias pessoais, é
hipocondríaco e obsessivo compulsivo. Mostra uma série de objetos que ilustram
o relato: remédio para diarréia, embora não sofra de diarréia, remédio para
ingestão, chiclete, etc. Na sequência, pede a todos que pensem em defeitos
pessoais que levados a extremos (ou não) pudessem tornar-se obstáculos para o
nosso desenvolvimento. Solicita que alguns voluntários comentem seus próprios
defeitos e mostra como isso pode tornar-se um conflito. Continuando o
exercício, indica a todos que pensem uma situação real dramática ou cômica em
que essa característica tenha interferido. Divide o grupo em trios: A, B e C.
Logo, A deve contar sua história e B deve ouvir e transformá-la em prosa. B,
por sua vez, conta seu relato para que C faça as notas e, por último, C conte
para A. Finalmente, pede que cada um devolva ao dono de cada história o relato
escrito. Isto é, C entrega o que escreveu para B, B para A e A para C. Assim,
cada um deveria transformar em diálogos e ações o relato em prosa feito pelo
companheiro. Ao comentar os exercícios um dos participantes diz: "Eu achei
que minha história voltou para mim com a subjetividade de B e não com a objetividade
que contei". Por último, o palestrante explica que em geral as peças ruins
ou escritas por autores inexperientes costumam dar informações demais na ânsia
de passar tudo ao espectador e que uma forma eficiente de saber se uma peça é
ou não boa é pegar o texto, virá-lo de ponta cabeça e ver se os diálogos fazem
uma espécie de ziguezague, pois textos com falas muito longas não mantêm a
atenção das pessoas, afinal nós mesmos no dia a dia nem completamos as frases,
falamos de formas diferentes dependendo do contexto, etc. Creio que este curto
resumo das seis horas de oficina é suficiente para entrar a analisar as
entrelinhas do enunciado. Entrelinhas estas bastante explícitas no que diz
respeito ao triunfo do naturalismo e da noção de objetividade dentre todos os
estilos possíveis. Evidentemente, um autor é livre para utilizar a linguagem
que quiser, com o nível de formalidade que julgar pertinente e deve pensar
exclusivamente em ser fiel a sua intuição criativa ao escrever, quer sejam
frases longas, curtas, rebuscadas, coloquiais, etc. Quem deve se ocupar de
tornar aquele texto crível é o diretor e o ator. Não é raro encontrar clássicos
"revitalizados" com uma linguagem mais contemporânea: "E aí,
beleza, Hamlet?". Tudo isso no intuito de tornar um texto como esses
"palatável" ao público. Aliás, essa é a premissa fundamental para o
palestrante. Alega ele que o autor deve pensar no público ao escrever, pois se
o público deixou de ir ao cinema ou assistir à TV para ir ao teatro, devemos
agradecê-lo, oferecendo-lhes entretenimento. Claro está que ninguém pretende
que alguém vá ao teatro para aborrecer-se, mas aparentemente a ideia do
palestrante é que ofereçamos ao espectador TV e cinema já que ele não viu TV e
cinema. No cinema, o estilo predominante é o naturalismo, a ponto de a ficção
incorporar cada vez mais em sua gramática própria as técnicas do documental
para transmitir uma maior sensação de realidade, enfatizando a ilusão de mímese
do real. O teatro, contudo, não pode, nem deve querer, competir com o cinema
cuja técnica permite visualizar uma decapitação com tamanho ilusionismo que a
cena poderia ser tomada por verdadeira. O último filme de Zé do Caixão
abandonou a essência de toda sua filmografia e utilizou cenas reais de
suspensão de humanos, por exemplo, para uma maior sensação de realidade. No
teatro, se houver uma decapitação, é recomendável que não haja sangue algum e
se houver que seja explicitamente catch-up! O teatro só pode sobreviver em sua
precariedade, em sua especificidade. O naturalismo é um estilo possível, mas
não deve ser confundido com dramaturgia. Escrever teatro requer conhecer
teatro, saber que se trata de um jogo que exige somente a cumplicidade do
público. Que este se divirta não é necessariamente excludente com formas de
estímulo próprias do teatro. Além do coloquialismo mencionado acima é comum
também ver no palco cenas encobertas de fumaça de um cigarro na mesma peça em
que atores fazem mímica na hora de uma refeição. Este é outro erro bastante
comum, misturar estilos e perder-se no meio do caminho. O teatro, mais que no
cinema e muito mais que na TV, é o locus próprio da imaginação, do implícito, é
o paralelo visual do livro, pois requer que o espectador (leitor) complemente a
narratividade com suas próprias imagens. Bastante já dissemos sobre o triunfo
do naturalismo. O mesmo se pode dizer sobre a objetividade. A referida
incorporação de técnicas documentais nos filmes de ficção são eloquentes nesse
sentido. O comentário do participante também foi sintomático nesse sentido. “Eu
narrei objetivamente e ele escreveu subjetivamente”. Não percebe que sua
narração, como toda narração está carregada de subjetividade. O que ele é capaz
de reconhecer como subjetividade, no entanto, é somente o relato do outro. A
subjetividade não é um mal a ser evitado, é o bem mais precioso a ser
explorado, é o que torna singular a história. Curiosamente, o ícone máximo dos
artistas mais progressistas, a saber, Brecht, é um dos grandes impulsores da
noção de objetividade na arte. Sua perspectiva de um teatro pautado pelo
distanciamento do ator em relação ao narrado é um legado do positivismo
científico, do estabelecimento dos paradigmas fundadores das ciências humanas.
E é mais curioso ainda que hoje essa perspectiva seja prontamente adotada no
mundo das artes, quando na própria ciência já está bastante minada por inúmeros
questionamentos. É normal, no entanto, essa defasagem, dada a fluência ou o
trânsito de formas de enunciação entre os diferentes discursos e saberes. Para
concluir este sucinto artigo, penso ser importante ressaltar novamente a
liberdade do dramaturgo para escrever sem outra preocupação que visualizar o
drama ou a ação. Da mesma forma, este saberá respeitar a liberdade do diretor
na montagem, do ator na interpretação e do público na leitura. Afinal, é vão
pretender controlar no processo artístico toda a cadeia de difusão ou a
ressonância de uma obra. Como diz Barthes, o sentido só se restitui no
receptor. Supor que conhecemos o que o público deseja ver, o que o mercado
deseja comprar, e guiar-se por esse conhecimento é pretensioso e absolutamente
detrimentoso para a arte. “Damos a eles o que querem ver”, supõe-se. Isso,
contudo, é uma homogeneização do público, é subestimar a capacidade do público
e realimentar um ciclo de produção de um gosto consensual fortemente
influenciado pela TV. É a velha desculpa do mercado! Não se experimenta o novo
para dar ao público o que este deseja. Este, porém, não pode conhecer o novo,
pois sempre se lhe oferece o mesmo. O gosto é construído historicamente e não
um dado inato, e o artista deve entender como ele mesmo se relaciona com esse
processo histórico. É, neste sentido, portanto, que o teatro não pode
esquecer-se de sua especificidade, sua natureza enquanto invenção que se dá
somente hic et nunc, no contato com o público, o qual é muito mais aberto a
experimentar do que os produtores de massa desejam ver.
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