sábado, 1 de julho de 2017

O fardo do naturalismo

Assisti recentemente a uma oficina de dramaturgia com X. Após as tradicionais apresentações de cada participante, o palestrante deu início a sua aula. Começa, “como não poderia ser diferente", dizendo que uma peça de teatro deve ter conflito, que sem este não há drama, ação. Ok. Diz que ouve sempre as pessoas dizerem que devemos escrever somente sobre o que conhecemos, mas que ele discorda, pois nesse caso todas as peças teriam um só personagem, o próprio autor. Logo diz que os personagens da peça devem ter lacunas, isto é, uma incompletude que os impede de ser perfeitos. Para tanto, começa a mostrar suas próprias manias pessoais, é hipocondríaco e obsessivo compulsivo. Mostra uma série de objetos que ilustram o relato: remédio para diarréia, embora não sofra de diarréia, remédio para ingestão, chiclete, etc. Na sequência, pede a todos que pensem em defeitos pessoais que levados a extremos (ou não) pudessem tornar-se obstáculos para o nosso desenvolvimento. Solicita que alguns voluntários comentem seus próprios defeitos e mostra como isso pode tornar-se um conflito. Continuando o exercício, indica a todos que pensem uma situação real dramática ou cômica em que essa característica tenha interferido. Divide o grupo em trios: A, B e C. Logo, A deve contar sua história e B deve ouvir e transformá-la em prosa. B, por sua vez, conta seu relato para que C faça as notas e, por último, C conte para A. Finalmente, pede que cada um devolva ao dono de cada história o relato escrito. Isto é, C entrega o que escreveu para B, B para A e A para C. Assim, cada um deveria transformar em diálogos e ações o relato em prosa feito pelo companheiro. Ao comentar os exercícios um dos participantes diz: "Eu achei que minha história voltou para mim com a subjetividade de B e não com a objetividade que contei". Por último, o palestrante explica que em geral as peças ruins ou escritas por autores inexperientes costumam dar informações demais na ânsia de passar tudo ao espectador e que uma forma eficiente de saber se uma peça é ou não boa é pegar o texto, virá-lo de ponta cabeça e ver se os diálogos fazem uma espécie de ziguezague, pois textos com falas muito longas não mantêm a atenção das pessoas, afinal nós mesmos no dia a dia nem completamos as frases, falamos de formas diferentes dependendo do contexto, etc. Creio que este curto resumo das seis horas de oficina é suficiente para entrar a analisar as entrelinhas do enunciado. Entrelinhas estas bastante explícitas no que diz respeito ao triunfo do naturalismo e da noção de objetividade dentre todos os estilos possíveis. Evidentemente, um autor é livre para utilizar a linguagem que quiser, com o nível de formalidade que julgar pertinente e deve pensar exclusivamente em ser fiel a sua intuição criativa ao escrever, quer sejam frases longas, curtas, rebuscadas, coloquiais, etc. Quem deve se ocupar de tornar aquele texto crível é o diretor e o ator. Não é raro encontrar clássicos "revitalizados" com uma linguagem mais contemporânea: "E aí, beleza, Hamlet?". Tudo isso no intuito de tornar um texto como esses "palatável" ao público. Aliás, essa é a premissa fundamental para o palestrante. Alega ele que o autor deve pensar no público ao escrever, pois se o público deixou de ir ao cinema ou assistir à TV para ir ao teatro, devemos agradecê-lo, oferecendo-lhes entretenimento. Claro está que ninguém pretende que alguém vá ao teatro para aborrecer-se, mas aparentemente a ideia do palestrante é que ofereçamos ao espectador TV e cinema já que ele não viu TV e cinema. No cinema, o estilo predominante é o naturalismo, a ponto de a ficção incorporar cada vez mais em sua gramática própria as técnicas do documental para transmitir uma maior sensação de realidade, enfatizando a ilusão de mímese do real. O teatro, contudo, não pode, nem deve querer, competir com o cinema cuja técnica permite visualizar uma decapitação com tamanho ilusionismo que a cena poderia ser tomada por verdadeira. O último filme de Zé do Caixão abandonou a essência de toda sua filmografia e utilizou cenas reais de suspensão de humanos, por exemplo, para uma maior sensação de realidade. No teatro, se houver uma decapitação, é recomendável que não haja sangue algum e se houver que seja explicitamente catch-up! O teatro só pode sobreviver em sua precariedade, em sua especificidade. O naturalismo é um estilo possível, mas não deve ser confundido com dramaturgia. Escrever teatro requer conhecer teatro, saber que se trata de um jogo que exige somente a cumplicidade do público. Que este se divirta não é necessariamente excludente com formas de estímulo próprias do teatro. Além do coloquialismo mencionado acima é comum também ver no palco cenas encobertas de fumaça de um cigarro na mesma peça em que atores fazem mímica na hora de uma refeição. Este é outro erro bastante comum, misturar estilos e perder-se no meio do caminho. O teatro, mais que no cinema e muito mais que na TV, é o locus próprio da imaginação, do implícito, é o paralelo visual do livro, pois requer que o espectador (leitor) complemente a narratividade com suas próprias imagens. Bastante já dissemos sobre o triunfo do naturalismo. O mesmo se pode dizer sobre a objetividade. A referida incorporação de técnicas documentais nos filmes de ficção são eloquentes nesse sentido. O comentário do participante também foi sintomático nesse sentido. “Eu narrei objetivamente e ele escreveu subjetivamente”. Não percebe que sua narração, como toda narração está carregada de subjetividade. O que ele é capaz de reconhecer como subjetividade, no entanto, é somente o relato do outro. A subjetividade não é um mal a ser evitado, é o bem mais precioso a ser explorado, é o que torna singular a história. Curiosamente, o ícone máximo dos artistas mais progressistas, a saber, Brecht, é um dos grandes impulsores da noção de objetividade na arte. Sua perspectiva de um teatro pautado pelo distanciamento do ator em relação ao narrado é um legado do positivismo científico, do estabelecimento dos paradigmas fundadores das ciências humanas. E é mais curioso ainda que hoje essa perspectiva seja prontamente adotada no mundo das artes, quando na própria ciência já está bastante minada por inúmeros questionamentos. É normal, no entanto, essa defasagem, dada a fluência ou o trânsito de formas de enunciação entre os diferentes discursos e saberes. Para concluir este sucinto artigo, penso ser importante ressaltar novamente a liberdade do dramaturgo para escrever sem outra preocupação que visualizar o drama ou a ação. Da mesma forma, este saberá respeitar a liberdade do diretor na montagem, do ator na interpretação e do público na leitura. Afinal, é vão pretender controlar no processo artístico toda a cadeia de difusão ou a ressonância de uma obra. Como diz Barthes, o sentido só se restitui no receptor. Supor que conhecemos o que o público deseja ver, o que o mercado deseja comprar, e guiar-se por esse conhecimento é pretensioso e absolutamente detrimentoso para a arte. “Damos a eles o que querem ver”, supõe-se. Isso, contudo, é uma homogeneização do público, é subestimar a capacidade do público e realimentar um ciclo de produção de um gosto consensual fortemente influenciado pela TV. É a velha desculpa do mercado! Não se experimenta o novo para dar ao público o que este deseja. Este, porém, não pode conhecer o novo, pois sempre se lhe oferece o mesmo. O gosto é construído historicamente e não um dado inato, e o artista deve entender como ele mesmo se relaciona com esse processo histórico. É, neste sentido, portanto, que o teatro não pode esquecer-se de sua especificidade, sua natureza enquanto invenção que se dá somente hic et nunc, no contato com o público, o qual é muito mais aberto a experimentar do que os produtores de massa desejam ver.

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