sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Homenagem aos últimos desertores ou a saga dos heróis da resistência

Durante anos foi uma inclemente e incessante luta contra os ditames da genética que fizeram da calvície norma entre os homens de minha família, precoce em geral. Esta se tornou uma ameaça inesperada, mas iminente a meus olhos, aos 23 anos. Nessa época levava o cabelo pela cintura aos moldes tradicionais de um estudante, embora renegado, de ciências humanas. Comecei a observar que o risco que se formava na faixa central do cabelo tornava-se cada vez mais amplo, perigando merecer a denominação avenida. Foi o estopim para a decisão de cortar o cabelo. Um momento de grande proeminência neste histórico capilar que me proponho agora a fazer. Acorri ao salão de Elza, cabeleireira que se ocupava de meus cortes em minha infância, para, diante das lágrimas reprimidas da Inara, minha esposa, mulher, companheira, ou seja lá o termo politicamente correto para não incorrer em um eventual machismo, cortar aquelas madeixas cultivadas ao longo de não menos que seis anos. Para minha surpresa, porém, ao terminar o corte, não mais que uma tesourada desferida contra uma trança indefesa, trinta centímetros de cabelo entrelaçado que até hoje repousam protegidos em uma sacola de pano ao fundo de uma gaveta de meu escritório, Inara exclamou com alegria que havia gostado. Aos poucos dias confirmava que gostava até mesmo mais de meu cabelo cacheado e curto do que antes. A fase do cabelo a la ciências humanas ficava para antanho enfim e na mesma gaveta que abrigava a trança deveria ter guardado o diploma de bacharel em ciências sociais.

O cabelo cacheado não me desagradou, afora as facilidades que o novo corte trazia: não mais despendia meia hora desembaraçando o cabelo com um pente de dentes espaçados sob o sopro esbaforido do sobrecarregado secador, agora bastava sair do chuveiro, esfregar a toalha e sair. Neste momento, é necessária uma breve regressão aos anos oitenta, quando eu ainda morava na rua oito. O cabelo cacheado naquele então, saberão disso todos aqueles que tenham apresentado esse fenótipo durante a referida década, era razão de traumas e incômodos. Por alguma razão, suspeito que relacionada aos heróis mirins e juvenis dos filmes de hollywood, sempre com cabelos lisos e franjas laterais, os cachos destoavam do padrão estético predominante. Desta forma, recordo em minha rotina matinal, antes de sair para a escola, meu empenho herculano em molhar o cabelo e com um insistente pente estirar cada cacho para o lado, enquanto o sol ainda se esforçava para despontar no céu. Era, no entanto, um vão esforço, pois já na esquina de minha casa, enquanto caminhava rumo à escola, num motejo irreverente, os cachos voltavam a formar-se à primeira aragem. Mas essa fora apenas uma fase, talvez na pré-adolescência, quando invejava o cabelo liso e escorrido de Renato. Em outros tempos, meu cabelo fora uma marca inconfundível. Até os 10 anos, tinha o cabelo longo, até o meio das costas, mas com um corte diferente do descrito acima. Eram outros os tempos, início dos anos oitenta, portanto pouco poder-se-á condenar-me por tê-lo usado longo embaixo e aparado em cima, ao estilo Roberto Matias (Fábio Júnior em Roque Santeiro) ou também popularizado por Chitãozinho e Chororó (sic). Aquele penteado rendeu-me vários apelidos, mas o que mais recordo é cachinhos dourados, ou algo assim. Certa feita, em Buenos Aires, creio que no teatro Colón, dirigia-me ao banheiro masculino, quando um guarda exasperado me chama para corrigir-me e dizer-me que o sanitário feminino se encontrava na outra ala. O equívoco só se desfez quando me virei, pois, por fortuna, meu rosto sempre foi bastante masculino. Desculpou-se. Logo enjoei daquele penteado, não sem antes resistir durante anos ao acosso de meu avô, quem sempre me oferecia dinheiro para que cortasse aquele cabelo, afeminado aos seus olhos. Finalmente, para sua satisfação, cortei, mas não pelo dinheiro, foi mesmo por princípios. Mas não me deixaria vencer tão facilmente pelo convencionalismo, pedi à cabeleireira que deixasse um único cacho, também conhecido como rabinho ou rabicho. Novamente, aquela inovação tornou-se uma marca rapidamente reconhecida na escola.

Após essa descrição extemporânea de minhas pueris aventuras capilares, retornemos a tempos mais atuais, quando aos 26 anos confirmo as suspeitas da impiedosa influência dos genes familiares, meus dois primos mais próximos já utilizavam a cabeça rapada, e decido procurar uma dermatologista para saber o que se pode fazer ante a temível ameaça as minhas agora apreciadas madeixas. Lembremos que a década já é outra e também por estranhas razões os cachos caíram no gosto popular. Não apenas são apreciados como em uma de minhas tantas ocupações favorece-me imensamente. Na publicidade, os cachos passam a compor um dos perfis mais solicitados e como ator, por alguns anos somente de publicidade, isso se tornou uma boa vantagem. Nesse contexto, ver a ainda incipiente queda dos fios levou-me à doutora Miriam, quem me receitou Propécia (finasterida), único remédio até hoje conhecido que, se não evita, retarda e diminui bastante a queda. Foram três anos tomando o comprimido, toda noite antes de dormir, até consultar um urologista, calvo por sinal, que me alertou para os perigos de um uso contínuo. Eu sabia de casos de pessoas que tinham tomado o comprimido durante dez anos, sem ter nenhuma conseqüência, também já tinha sido alertado para os riscos, constatados em menos de 1% da população estudada, de que o medicamento provocasse impotência, reversível em todo caso, mas o que comprovadamente não ocorreu comigo. Ainda assim, o médico, que parecia não simpatizar com o comprimido, assustou-me um pouco mais ao solicitar-me uma série de exames, incluindo níveis de testosterona e condições do fígado, que, por fortuna, não apresentaram alterações. Mesmo assim foi o suficiente para abandonar o medicamento e aceitar parcialmente o destino. Consultei outros dermatologistas que me indicaram xampus de cetaconazol para diminuir a seborréia, segundo eles causa da aceleração da queda, e o uso de Avicis, uma versão de uso tópico da própria finasterida. Com essa combinação ou quiçá pelo próprio ritmo natural da queda, isso jamais saberei, pude manter meus cachos por vários anos ainda. Na frente, escasseavam cada vez mais, mas graças a seu tipo, era capaz de ocultar as áreas menos povoadas, que jocosamente chamava, cunhando um termo para os politicamente corretos, de SCCE, Superfície do Couro Cabeludo Exposta. Portanto em vez de dirigir-se a um sujeito sem cabelo como careca, cabeça de ovo, aeroporto de mosquito, etc., os manuais éticos poderiam sugerir Indivíduo com maior SCCE. Nos últimos tempos, aqueles indivíduos que por ventura medissem mais de 1,70 m poderiam começar a notar o aumento dessa superfície exatamente no topo da minha cabeça ou local onde se assenta o quipá ou solidéu entre os judeus – talvez até esta tenha sido sua origem e causa primeira, cobrir essa incipiente calvície; quem sabe donde de fato surgem as tradições, refiro-me às motivações últimas inumadas sob as pesadas camadas da retórica? Tudo isto, aceitei numa espécie de resignação, mas sem perder a chance de servir-me da zombaria, sou do tipo que “perde o cabelo, mas não perde a piada”. Uma delas, por exemplo, era exaltar: "Garçom, há um cabelo em minha sopa! E o pior, ele é meu!". Mas minha dileta chacota era referir-me aos cabelos derramados, quer seja no chuveiro ou em qualquer outro lugar, como desertores e, por oposição, chamar os que persistiam de bravos heróis da resistência.
Eis aqui como explico o título desta pequena crônica. Hoje, por fim, durante o banho, vagas desses heróis da resistência abandonaram minha cabeça sem mais poder lutar. Era esperado e até desejado. Explico-me sem mais circunlóquios: no início desta semana, o oncologista surpreendeu-se de ver-me ainda com cabelo e só se recompôs ao perceber que o primeiro ciclo de minha quimioterapia fora há menos de duas semanas. “Deve cair na próxima semana, então. Se não cair, você deve nos avisar, pois tem que cair, é o único efeito colateral do qual temos certeza”. Depois dessa sentença, passei a desejar a queda, obviamente que dentro desse contexto tão peculiar apenas. A cada dia, porém constatava a bravura de meus heróis da resistência que, a despeito do prognóstico, não cediam. Ontem começaram a ceder os pêlos pubianos, peço perdão pela intimidade que exponho, mas é relevante para este filiforme relato. Ao tirar a roupa interior, vulgarmente cueca, para tomar banho constatei a presença de uma quantidade dantes nunca vista de pêlos. Ironicamente, os fios da cabeça renitiam enquanto outros já cediam. Claro que isto rendia novas piadas, “se perder os pêlos pubianos e do peito, poderei trabalhar como stripper”, “quando ficar careca, vou demorar menos no banho e secando o cabelo, etc.”. Hoje, porém, no banho os heróis da resistência começaram a tombar já exauridos em sua longa luta, caíam, tenho certeza, derramando as mesmas lágrimas, que a despeito de meu ânimo jocoso, não pude evitar. Vão-se, prometem-me que em breve outros virão quando tudo isto terminar, outros virão, vão-se com a sica traiçoeiramente cravada nas costas e, em últimos e doridos suspiros, desculpam-se "fizemos o que pudemos” e no limite de suas forças, pouco antes de escorrerem derradeiramente pelo ralo, prometem “outros virão”...

4 Comentários:

Às 19 de janeiro de 2009 às 15:14 , Blogger Luciane Godinho disse...

Este comentário foi removido pelo autor.

 
Às 21 de janeiro de 2009 às 07:50 , Anonymous Anônimo disse...

Muito bom SCCE!!! Eu gosto muito dos seus escritos. Fez-me muito bem. Era o que eu precisava para sair daquele espelho e das lágrimas escorridas por me sentir meio nada. Beijo, com carinho
Céci

 
Às 21 de janeiro de 2009 às 13:31 , Blogger Lala Bradshaw disse...

Parabens, Javier! Achei sua escrita muito sensivel e contundente.
Laura

 
Às 30 de janeiro de 2009 às 15:45 , Blogger Luciane Godinho disse...

Este textoé ficção? Bj,

 

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