domingo, 16 de junho de 2019

Mickey & Co., que mal tem?

Há algum tempo sinto um incômodo com um fenômeno contemporâneo cuja causa não conseguia distinguir precisamente. À primeira vista, o atribuía a minha rabugice e ao inegável fato de que estou envelhecendo e, com isso, abandonando a geração que comanda o mundo e os gostos hoje em dia, para não dizer (já dizendo), a geração que dita as tendências de consumo. Não descarto que haja algo disso nesse incômodo, mas decidi investigar um pouco mais a fundo, visto que essa mesma sensação me acompanha há anos quando ainda posso dizer que pertencia à geração relevante para o mercado. Deixando de lado a autoanálise, passo agora a falar do fenômeno em si, o objeto do meu incômodo.

Observo hoje em dia, mais que em outros tempos que a minha falível memória me permite recordar, que cada vez mais adultos encontram nas produções de Disney e filmes e séries de super-heróis a sua principal fonte de entretenimento. Não digo que nos anos 80 o lançamento do Superman não tenha sido recebido com enorme entusiasmo pelo público em geral e que os carismáticos personagens de Disney não gozassem de certa reputação entre adultos, mas não eram a fonte exclusiva de entretenimento e os pais se refugiavam nos filhos como álibi para visitar os parques de Orlando. Hoje, parece, ao menos aos meus ouvidos ranzinzas, que heróis e Disney são tudo o que existe e os adultos já não precisam de desculpas para programar viagens sem crianças aos cada vez mais alucinantes parques temáticos na Flórida.

Aceitemos por um minuto que esta hipótese que levanto de forma empírica, sem nenhum embasamento estatístico real, a não ser o que os meus ouvidos cada vez mais surdos às necedades cotidianas, me permitem depurar, esteja de fato correta. A pergunta seguinte seria: há algo de errado nisso? Tem motivo para me causar qualquer incômodo? É isso que desejo escrutinar para determinar se é apenas a minha rabugice atingindo novos patamares ou se algo nesse fenômeno merece desconfiança como toda grande hegemonia que se impõe.

A primeira pergunta que me vem à mente refere-se ao conteúdo desses produtos (propositalmente escolho esta palavra no lugar de obra, pelo que se expõe a seguir). O conteúdo, inicialmente concebido para o público infantil, utiliza modelos de compreensão e interpretação de mundo bastante simplificados. Em geral, resumem os conflitos a uma dualidade entre bem e mal e têm uma finalidade moralista, que visa a integração da criança a um regime social. São modelos que propõem uma verdade moral fundada na tradição e não fomentam a reflexão além de determinadas fronteiras. Quando adultos, trabalhadores cansados de um dia a dia exaustivo, recorrem a este conteúdo como forma de lazer, estão relaxando todos os poros do seu corpo, especialmente o senso crítico. Não desejam qualquer reflexão, apenas a corroboração dos modelos vigentes.

Outro agravante da elaboração desses produtos é que se fundamentam em fórmulas cujo resultado deve ser o sucesso, tomado aqui como venda ao maior número de consumidores. Para tanto, os grandes estúdios possuem fórmulas que devem reciclar constantemente e jamais arriscam demasiado. São fórmulas que novamente recorrem a modelos simplistas e tradições para não incorrer no risco de desagradar os seus consumidores. Isso é o oposto da minha concepção, novamente rabugenta e ranzinza, de obra artística que a vê como aquela que não deve agradar ou ao menos não deve ter no gosto alheio seu juiz definitivo. São fórmulas comprovadas, funcionam, é quase impossível terminar de assistir a algum desses produtos sem aquele sorriso anestesiado nos lábios e a vontade de continuar consumindo. Nada a objetar em relação à qualidade técnica atingida por essas fórmulas.

A pergunta seguinte é, portanto: se agradam a maioria e funcionam tecnicamente, há algum mal nisso? Claro que a resposta dependerá do grau de conformismo ou cinismo de cada um. No meu entender, trata-se de um processo contínuo de doutrinação e redoutrinação moral, que favorece a manutenção do status quo, a ratificação de valores hegemônicos e o consumo desenfreado. Mas, mais grave ainda, o resultado dessa doutrinação é uma geração de adultos infantilizados que ancoram a sua visão de mundo nesses modelos narrativos simplificados marcados pela dualidade entre o bem e o mal. Não surpreende ver nos dias de hoje todo o debate político, quer sejam posturas de esquerda ou direita, fundar-se nessa dualidade. Na direita, é fácil vê-la em lemas como “ame ou deixe”, “ame o seu país”, “amor à pátria”, “restabelecimento da ordem”, etc. Na esquerda, ideais como “bem comum” (separados do seu conteúdo político e caráter necessariamente conflituoso), “intelectual” e de “arte salvadora” (única capaz de salvar a humanidade), entre outros, também encarnam a figura do bem.

É preciso aceitar a reintrodução da política nas relações sociais, não como um herói salvador, muito menos como o meio para o triunfo de um valor inquestionável, mas como esse campo minado e inerentemente conflituoso em que atores com interesses distintos e visões de mundo diferentes devem dialogar ou se matar. E esse é um cenário que não cabe nos roteiros de Disney, da Pixar, da Marvel, etc. Mas esse é também um cenário que, apesar de parecer ter menos sangue aparente, balas, perseguições de carro e bombas arrasadoras, promove um desassossego aterrorizante entre adultos que preferem se refugiar no regaço confortante de Mickey e companhia.

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