sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Uma noite verborrágica - em terceira pessoa

A pizzaria era pequena e esforçava-se por criar um clima de aconchego, com mesas suficientemente espaçadas e bem decoradas. Mas o que mais motivara J a sugerir o local fora o fato de servirem pedaços de pizza, permitindo que cada um escolhesse seu sabor sem que houvesse a necessidade do penoso consenso, após árduas negociações sobre preferências e restrições, na escolha da pizza. Azeitona de jeito nenhum, Minha massa mais fina, Nada com calabresa. Como sempre, M mostrou-se insatisfeita com o ambiente, julgando-o pouco requintado. Obviamente não manifestou sua insatisfação verbalmente, mas seu corpo o deixava claro e tanto ela como J sabiam disso. P, por outro lado, parecia contente e não se incomodava com nada enquanto escrutinava o cardápio. J estava ainda algo impressionado com aquela noite, ao típico ritmo de M que se empenhava em estender, comprimir, entortar as horas, os minutos, os segundos, para atender aos inúmeros compromissos sociais que ela mesma se impunha. Não tinha sido o ritmo o que o impressionara, a isso J estava acostumado dada a estreita convivência nos últimos meses, mas sim o incomum evento ao que assistiram minutos antes.

Deixaram às pressas o Festival de Curtas na Cinemateca, sem esperar o encerramento da última sessão, pois às nove deviam encontrar-se com P no auditório do Ibirapuera para assistir a um concerto de um renomado pianista, mas não suficientemente renomado para ser do conhecimento de J, justiça se faça, no entanto, isto mais se devia a ignorância de J sobre o mundo da música que ao alcance da meritória reputação do artista. Às nove em ponto chegaram, deixando o carro o mais próximo possível da porta do auditório, pois era uma das noites mais frias do ano e, mesmo sob volumosas jaquetas, um iracundo vento enrubescia os rostos de J e M. Finalmente, encontraram-se com P, mas fazia-se hora e M mal teve tempo de apresentá-la a J. Entraram os três no opulente auditório de imenso pé direito e com quase 1000 poltronas distribuídas numa largura que em muito excedia a extensão do palco. P tinha os convites para os três, cortesia do órgão em que trabalhava. Sentaram-se na segunda fileira, o que não custou muito, pois o público não passava de um grupo de no máximo 20 pessoas. Aquela platéia repleta de ausências – perdoem-me pelo pueril oximoro – dava ao concerto uma aparência de ensaio ou reunião de família que discrepava tanto com a ingente arena quanto com o aparotoso cenário. Os músicos, bastos em virtuose, encerraram sua apresentação em meio aos aplausos, que pareciam algo peripatéticos ante o silêncio estrepitoso (insisto nos oximoros) das poltronas vazias, e alguns pedidos de bis, que J e M pareciam esperar que não fossem atendidos, não pela qualidade da música, inquestionável, mas sim pela fome e pelo cansaço após o corrido dia. Mas prevaleceu o contrato tácito entre público e músicos e estes retornaram para mais um breve número. Novos aplausos e podemos retornar, após este pequeno excurso, que os mais objetivos poderão considerar algo desnecessário, à aconchegante pizzaria.

Ao redor de uma mesa redonda com seis lugares, M, sentada ao lado de P, finalmente a apresentou a J que se acomodara em frente das duas deixando uma cadeira vazia a seu lado. P quis saber como M e J tinham se conhecido, M se encarregou de falar sobre o mestrado, sobre o Diplô, sobre os diversos projetos que tinham juntos. J não conhecia P pessoalmente, mas sabia algo sobre ela, pontas soltas de relatos que sua esposa lhe havia feito, pois as duas eram afilhadas da "Tia Z” na Bahia, as duas se conheciam de infância e sabiam algo uma da outra por intermédio da madrinha em comum. Mundo pequeno, maravilhou-se P, preciso contar isso para Tia Z, ela não vai acreditar. Sempre que ouvia essa afirmação, J sentia-se fortemente compelido a refutá-la, muitas vezes sentia que não pagava a pena, ou a saliva, meter-se às pugnas por tão pouco, mas essa noite ele estava especialmente pontilhoso, mais do que de habitual. Não é o mundo que é pequeno, mas sim os círculos. Embora a população mundial já ultrapasse seis bilhões, o círculo de pessoas com quem podemos ter coisas em comum é muito menor. Por exemplo, certa vez um amigo de minha irmã que estudava com ela foi à Patagônia e abrenhou-se nos confins do território austral onde não havia nada nem ninguém, com exceção de outro rapaz com os olhos igualmente perdidos naquele ermo cenário. Viram-se e começaram a conversar. Quando o amigo de minha irmã disse que morava no Brasil, mais especificamente em Campinas, o outro contou que tinha uma conhecida, prima de seu melhor amigo lá. Anegaram-se nos detalhes, até perceberem que se tratava da mesma pessoa. A coincidência que ressumou da conversa os impressionou e naquele mesmo arrabaldado e gélido local trocaram calorosos abraços comemorando algo que não sabiam bem o que era. Não era a primeira vez que J fazia esse relato, porquanto notava-se-lhe certo tom, senão mecânico, algo gasto. As palavras rebuscadas, assumamos-lho, deve-se mais as firulas estilísticas do narrador que se deu a licença de abandonar o estilo coloquial pertinente a uma mera conversa de bar. Até aí poderíamos ratificar que, sim, o mundo é pequeno. Mas J apressou-se em esclarecer, Qual seria a possibilidade de que em vez de dar-se com um portenho, de classe média, universitário, branco, perdido no cu do mundo, o mesmo diálogo se desse com um afegão muçulmano recém saído de sua peregrinação à Meca? Não é o mundo que é pequeno, mas sim os círculos. P mostrou-se pouco interessada em rebater o aparentemente inconsútil argumento de J e M apenas anuiu com um gesto rápido, talvez já até tivesse ouvido o mesmo relato.

Os pedidos, as bebidas, dois pedaços, M não queria nada, pediram crostinis para que ela comesse algo. O tema do bate-papo, ignoro como, pois este narrador mais que onisciente, é um tirano que esculpe os diálogos, todos reais, exare-se já, a seu bel-prazer, mas com bondosas intenções, desviou-se da Patagônia para avoengos tempos. P contou a saga de seus pais numa migração cheia de percalços, J também narrou a história de sua família marcada por constantes fugas, seu bisavô, não lembrava qual, afinal eram oito e, já dos quatro avós, apenas uma avó conhecera, tinha colado os dedos de seus pés para fugir de exército e emigrado da Rússia para a Argentina. Também contou de uma bisavó que viajara com sua filha embaixo da saia para que não a roubassem, prática comum nas trimestrais travessias marítimas daquele então, enquanto outra perdera dois filhos numa viagem similar e de tanto chorar, segundo lendas da família, ficara com um olho de cada cor. Falou de seus pais, que também fugiram da Argentina no início da década de 80 em função da ferrenha ditadura, com ele e sua irmã a tiracolo e arrematou ironizando, e daqui para onde irei? Após um breve silêncio, ou para o bem da verdade, algumas mastigações algo ruidosas, P concluiu com certa alegria que nossos tempos eram muito melhores e, por sorte, não passamos por tantos sofrimentos.

Já comentamos antes que J estava especialmente irascível naquela noite, mas a seu viso P cometera com aquela afirmação um dos mais imperdoáveis pecados de um raciocínio, a falta de uma perspectiva histórica. Comparar épocas, quer seja para louvar um passado longínquo, do qual desgraçadamente nos desviamos para atingir o decadente status da sociedade atual, parca em valores e tradições, ou para deslumbrar-se com os quiméricos avanços da humanidade, era para ele um tremendo erro. Épocas não se comparam, dizia J acerbando, sem perceber, o diálogo. Como não sofremos? Há miséria por toda parte, crianças nos semáforos, favelas, fome, etc. Sim, mas eu não acho que nós soframos diretamente como nossos avós, retorquiu com calma P. Como não? Desatou, então a falar da classe média paulistana, que se trancafiava em seus condomínios, pagava vigias, blindava carros, dos assaltos, do fato de cegar-se nos semáforos colmados de malabaristas mirins, munidos de limões ou batutas, fechando a janela, ligando o som ou simplesmente distraindo-se com sms`s ou celulares. Citou Foucault, a política é uma guerra silenciosa, falou das balas perdidas no Rio. Sim, mas não vivemos em guerras, insistiu P. Como não? Neste século, poucos foram os anos sem uma guerra. Mas não aqui. Claro que sim, insisto na guerra silenciosa, nas estatísticas que mostram um número maior de vítimas da violência urbana que em diferentes zonas de guerra, da violência institucional da polícia contra os pobres, da situação dos negros parados em qualquer lugar e sem nenhuma razão pela polícia! J mostrava-se disposto a continuar em seu esforço para fazer com que P se precatasse da falta de perspectiva histórica de sua colocação. M, ao contrário de J, parecia pouco disposta a falar, lançava escassas afirmações secundando o ponto de vista de J, com quem costumava concordar, e algumas outras para desbastar aquela já chispeante conversa. P, por fim, não contra-argumentava, mas mostrava-se inamovível em sua opinião. Não sofremos.
Não houve nenhum acordo, consenso ou, ao menos, alguma concessão e, por estranhos e sibilinos caminhos, desses que as conversas de bar soem ter, o próximo assunto foi o budismo. Aparentemente, P começara a aderir ao budismo. Desta vez, foi M quem começou, com maior polimento que J, pois sua maneira de falar era muito mais branda e, em nada se parecia aos acutiladiços modos demonstrados por ele naquela noite, a questionar a posição de P. Dizia que o que lhe irritava no budismo era uma certa aceitação do estado das coisas, uma certa passividade perniciosa. J pouco se manifestou, apenas quis registrar que não sabia muito sobre o budismo, mas achava que a leitura ocidental, rotineiramente traduzida na afirmação de que uma transformação na sociedade só era possível a partir da transformação individual dos sujeitos, geralmente redundava em inércia e indiferença, especialmente se lembrássemos que se trata de uma "religião" ou filosofia tão praticada em uma sociedade de castas em que milhões de crianças habitam barracos às margens de esgotos e puteiros. M acrescentou algumas comparações entre o cristianismo e o budismo, sem defender nenhum dos dois, mas o tema novamente mostrou-se controverso.

Mais um pedaço de pizza, J repetiu o seu sabor, P pediu outro, M apenas beliscou um pouco do pedaço dos dois e tomou, acompanhada por P, uma taça de vinho, muito a convir para uma noite tão fria. O tema, novamente pelos típicos meandros de conversas de bar, era a velhice. Dos três, J era o mais velho, tinha 32 anos, M e P aparentemente tinham quase 30, não faltará a este narrador a finura ao revelar precisamente a idade das moças. O fato é que de questões políticas, passaram a existenciais comentários sobre a vida, a solidão, P saíra recentemente de uma relação longa, e a velhice. J contou que em sua família seus avós não eram muito longevos, com exceção de sua avó paterna, falou especialmente de seu avô materno, quem morrera aos 33 anos, idade que teria em dois meses, de câncer nos testículos. P afirmou que em sua família era o contrário. Neste momento, J lançou outra de suas já gastas frases de efeitos, certamente utilizada em diversas conversas existenciais e pseudofilosóficas. Achava-a tremendamente forte e com acrimônia dizia, Às vezes vejo um velho, arrastando-se com um bastão – pensava em um vizinho com as pernas inchadas, a boca semicerrada, o olhar ao chão e sua boina branca protegendo do sol sua gasta pele –, e fico pensando, é essa a melhor sorte que podemos ter? A decrepitude? Com sorte chegaremos a isso. Fez essa última afirmação com certa sorna, esperando que finalmente naquela noite houvesse um consenso, ao redor do poderíamos chamar mito de James Dean, Jimi Hendrix, Jim Morrison, Janis Joplin, figuras imorredouras, mas todas mortas. Dito parecia tão bonito, a existência resumida à sua primavera... Mas P, com a mesma calma que mantinha desde o início da conversa, ousou discordar. Eu não sei, acho tão bonito quando vejo um velho, tanta sabedoria, tudo o que viveu, a experiência. J nem quis retorquir mais nada, aceitou aquela visão, pueril aos seus olhos, quase podia ver a hollywoodiana cena do avô dando conselhos a seu inquieto neto, exalando sabedoria por cada poro de sua enrugada pele. Pediram a conta, pagaram e foram embora os três no mesmo carro. Cada um pensando naquela noite tão verborrágica. Apesar de tudo, os três disseram ter gostado da conversa. M pensava na ingenuidade da amiga. P não parecia incomodada, mas J se perguntava se não teria sido demasiado pungente, mal conhecia P e argumentara com tanta contundência. Algum dia talvez pedisse desculpas, mas o que podia fazer, assim ficava quando o tema o instigava. M deixou J em seu carro que tinha ficado na cinemateca e deu uma carona a P até sua casa. J dirigiu sem prestar muita atenção ao caminho, repassando a conversa, o que J não sabia era que em sua boca, a mesma que dera cabo a dois pedaços de pizza – era moderado ao comer –, a mesma que esgrimira argumentos com tanta paixão a favor ou contra do que fosse, em uma noite algo estranha, nessa mesma boca, residia, ameaçador e silencioso, um tumor de 1,5 cm, um osteossarcoma. Um caso raro, aflige a 2% da população mundial apenas, segundo o semiologista, era o que na medicina se chama acidente de percurso, sem explicação e independente do estilo de vida. Não sabia que dali a algo mais que um mês seria operado, passaria por momentos que jamais imaginara, viveria um tratamento tão duro e enquanto receberia o medicamento na veia, lembraria daquela conversa. Pensaria sobre o que dissera acerca da velhice, como julgou ingênuo o olhar de P. Naquele momento, voltaria a pensar em seu vizinho, na velhice, e reafirmaria, mas agora sem nenhuma ironia, que aquela era a melhor sorte que alguém poderia ter. As rugas, a vida, acumuladas em passos lentos e lembranças, que se desfaz aos poucos, mas existiu em toda sua intensidade, aquilo era mesmo belo, daria a razão a P, era a beleza do improvável que vence dia a dia as estatísticas, os perigos, as balas perdidas do Rio, as turbinas defeituosas do avião, as bactérias letais das ostras mal conservadas, os acidentes de percurso, é o milagre que não se explica, o triunfo, mesmo que temporário, mas que não se deixa nunca enuviar, contra o temível orco. Quanto a este narrador, despótico, mas bem-intencionado... nada. Só quis experimentar, exercitar, a terceira pessoa, omitir nomes, à moda Hemingway ou, ainda, ao estilo dos relatos psicanalíticos, quem sabe tratar J, M e P como seus objetos, sua criação, seu mundo, sua própria ficção.

4 Comentários:

Às 26 de janeiro de 2009 às 04:55 , Anonymous Anônimo disse...

'em carros blindados e condomínios fechados... ' está tudo dentro da gente. O universo inteiro. Todas as contradições e a impossibilidades de se descobrir mistérios através delas.
Gracias pelas novas palavras..kkkkk só você mesmo!! Não dá nem para jogar dicionário contigo.
Beijo,
Ceci

 
Às 26 de janeiro de 2009 às 12:49 , Blogger Paula Vanina disse...

MARAVILHOSO!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

AProveito o "coletivão" para dizer que esse foi um dos contos mais lindos que já li.
Ele vem como se nada e
me fez pensar nas inúmeras noites verborrágicas que já tive inclusive contando a história do encontro de amigos de amigos na Patagônia (rsrsrs).
me fez ficar a favor e contra de alguns argumentos.
me fez ter uma certa raiva por Javi estar superando Saramago nas palavras difíceis (haja dicionário) (oximoro, ingente, bastos, peripatéticos, estrepitoso, excurso, meter-se às pugnas, pontilhoso, anegaram-se, ressumou,arrabaldado, inconsútil, anuiu, avoengos, viso
secundando, sibilinos, etc, etc etc e
acutiladiços (ah mas essa eu conhecia graças a um dos lindos momentos de conversa ao redor da mesa que tivemos em SP).

E me emocionou mais do que nunca (e logicamente me fez ir às lágrimas - que difícil não?) a forma de fechar a reflexão da noite com a REvisão sobre o bom-tempo da velhice e seus motivos.

Obrigada Javi.
Pauli

 
Às 2 de fevereiro de 2009 às 22:26 , Blogger Luciane Godinho disse...

É um tipo de ironia cruel que já senti nos textos de Cortázar, por exemplo. Mas, é pelo riso que a gente se torna acessível ao que não se pode aceitar friamente né? Traz à tona tantas oposições, conexões casuais e um acaso tão fatalista. Fiquei perplexa e não sei o que pensar de momento. O texto é bom demais.Bj,

 
Às 2 de fevereiro de 2009 às 23:10 , Blogger Luciane Godinho disse...

É assustador o arbitrário da vida né? Parafraseando Jung, até mesmo o mais absoluto verborragista é levado à amaldiçoá-lo. Vou dormir. Bom dia.

 

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