quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Dura Vita

 

Somos seres racionais e morais, vemos a natureza com esses olhos e é inevitável. Mesmo tentando entendê-la, é difícil conciliar no nosso coração o terror e a beleza. Há cerca de dois meses, adotamos uma nova gatinha, que é linda, ágil, brincalhona, totalmente gata... portanto, totalmente caçadora. Bastante diferente do nosso gato gordo, preguiçoso, um verdadeiro Garfield que prefere a proximidade de uma pizza do que uma presa. 

Na nossa casa, temos um corredor lateral onde mantemos um comedouro de pássaros bastante alto. Sempre serviu de televisão 5D pro Zé (nosso primeiro gato). Desde que a Chita chegou (a segunda gata), a TV interativa ganhou nova relevância. Mais de uma vez, vimos o Zé a alguns centímetros dos pássaros, mas sem a menor intenção de atacá-los. Dava para ver em seus olhos budistas uma remota nostalgia de quando se sentia gato, mas dar o bote hoje seria muito trabalhoso. Já a Chita, espevitada ao extremo, não tem essa preocupação. Toda noite nos enche a casa de baratas que caça por todos os ralos e traz para brincar. Não mata uma barata sequer, apenas as deixa tontas e espalhadas pela casa. O Zé, quando tinha esse hábito pueril, mais de uma vez comia mesmo a barata e acaba vomitando.


Agora voltemos ao comedouro. Faz algumas semanas estamos observando uma sabiá-laranjeira cada vez mais assídua ao comedouro. De manhã cedo, sempre ponho restos de mamão e banana pra ela. Quando atraso um pouco, a sabiá já começa a gritaria. Neste domingo, flagramos um momento de muita ternura. A sabiá alimentando seu filhote na boca, na frente do comedouro, como se quisesse ensinar-lhe onde ficava a comida. 

Ontem pela primeira vez, o filhote da sabiá decidiu descer no corredor para pegar restos de comida. Grave erro. Não foi acaso instruída para não o fazer? A Chita não teve dúvida e correu até ele, mas por sorte o pássaro teve tempo de voar e fugir. Ficamos, no entanto, com o mau pressentimento de que era questão de tempo até que ela o pegasse.

Pois bem, agora à tarde, enquanto eu trabalhava, comecei a ouvir uma imensa gritaria dos pássaros no corredor. Em seguida, ouço barulhos intensos na sala e na hora entendi o que estava acontecendo. Efetivamente, o filhote de sabiá estava no chão da sala, vivo, mas desnorteado. A Chita feliz rodeava o bichinho e o chão da sala cheio de penas. Tirei a Chita da sala, quem me olhou com cara indignada, como se eu fosse um traidor. Seus olhos diziam: “pensava que você estava do meu lado”. Coloquei o passarinho em uma caixinha, vi que conseguia voar e não tinha grandes feridas aparentes. O devolvi ao comedouro em meio a algazarra dos sabiás que se aglomeravam no corredor. Assim que me afastei, a mãe se aproximou do filhote, o qual saiu voando desesperado.  Espero que tenha sobrevivido. 


Meu coração humano, partido, via a tristeza da Chita de perder seu maravilhoso brinquedo, o terror do filhote tentando fugir na sala batendo nas paredes, a mãe sábia/sabiá chorando aos berros, todos os outros sabiás acompanhando a gritaria e todas essas palavras, adjetivos e verbos, saindo da minha boca humana sem fazer nenhum sentido para a natureza. Não há beleza e não há terror, filhotes nascem, alguns prosperam, outros morrem, gatos são assassinos e são doces, novamente só palavras humanas. Todos são plenamente, o gato, o pássaro, o humano, enquanto o terror e a beleza são meras quimeras da nossa imaginação.

Fim

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