terça-feira, 19 de outubro de 2010

Acerca da imortalidade – Frankenstein transgênico!

“La vida no es la que uno vivió, sino la que uno recuerda y cómo la recuerda para contarla” – Gabriel García Marquez

A despeito do título pretensioso, não buscarei aqui uma definição concreta do termo imortalidade, muito menos farei um histórico de sua utilização. O intuito deste artigo é descrever e analisar uma idéia de imortalidade muito presente no imaginário “popular” – embora popular devesse ser utilizado com certas restrições, visto que algumas conotações do termo poderiam discrepar do principal locus deste imaginário, a saber, as classes médias e mais privilegiadas – na atualidade. Trata-se de uma concepção de imortalidade que privilegia determinados aspectos da vida que, como veremos a seguir, expressam-se na atividade mental, nos sentimentos e, mais especificamente, no prazer. Hoje em dia, uma idéia – por que não esperança? – de imortalidade muito frequente concretiza-se nas especulações muito mais assíduas na ficção que na ciência, embora desempenhem um certo papel, quase sempre ridicularizado nesta última, sobre a conjugação da criogenia com as pesquisas sobre reconstituição genética e inteligência artificial. A esperança de imortalidade hoje aparece fortemente refletida na possibilidade da conservação dos atributos psíquicos incluindo as capacidades intelectuais e sensoriais. Enfim, há uma valorização da preservação da memória em detrimento dos atributos físicos, basta recordar que grande parte das experiências atuais em criogenia são focadas na preservação da cabeça exclusivamente. Não nos interessa aqui discutir a viabilidade destes métodos. A busca pela imortalidade sempre existiu e não surpreende que reapareça com uma roupagem cientificista e, certamente, não tenho competência para avaliar a factibilidade dos intentos. No entanto, é extremamente importante compreender a simbologia por trás da abordagem.

Partamos de uma descrição mais detalhada do que gostaria de chamar mito de Frankenstein renovado. A busca de imortalidade por meio da criogenia associada à genética e/ou inteligência artificial tem sido representada nas artes e, com menos freqüência, na própria ciência da seguinte forma: após a morte do indivíduo, induzida ou não, antes mesmo de sua deterioração, o cérebro é congelado a uma temperatura suficientemente baixa para preservar seus tecidos, mas que não os danifique de forma definitiva (segundo as novas correntes, uma temperatura entre -80 e -100 graus centígrados). Uma vez preservado o cérebro, há duas possibilidades. A primeira caracteriza-se pela reconstituição de um corpo para hospedar a mente que ficara órfã. Esta reconstituição pode ser biológica ou biomecânica, ou seja, uma reconstrução do corpo a partir de informações genéticas ou a criação de um corpo mecânico que reproduza as funções (ou somente aquelas desejadas) do organismo. De qualquer modo, trata-se de providenciar um novo corpo para abrigar a mente preservada. O segundo caminho possível, ainda mais radical e elucidativo no contexto deste ensaio, dispensa a recriação do corpo humano e está associado aos estudos de inteligência artificial e realidades virtuais. O objetivo, nesta segunda abordagem, é construir um mundo virtual que possa hospedar a mente, isto é, codificar os sentimentos e a memória em mídias digitais para dar-lhes prosseguimento em um mundo virtual.

A ficção oferece hoje em dia, por meio de seu principal expoente, a saber, o cinema, inúmeros exemplos da generalização exposta acima, cujos principais destaques poderiam ser Matrix, Vanilla Sky, Exterminador do Futuro, entre muitos outros. A ciência também tem dado mostras de interesse nessa área. Para não cairmos no erro comum de atribuir certos comportamentos e idéias à modernidade – como gostam de fazer alguns verdadeiros neófilos, verdadeiros fanáticos por inovações e “quebras de paradigmas” que a cada momento procuram sinais de um novo tempo e apressam-se a classificar como pós-fato o próprio fato – seria importante ressaltar que não é de nosso interesse tomar este fenômeno por novidade. Por esta razão, apressamo-nos em trazer à lembrança o personagem de Mary Shelley cuja história ilustra com propriedade a simbologia que se pretende descrever.

Evidentemente, uma noção de imortalidade implica e define o próprio conceito de vida. O que é vida passa a ser definido pelas características a serem preservadas, ou seja, aquelas características que passam a constituir no imaginário coletivo o verdadeiro “eu” ou “essência do eu”. O “eu” é, a partir desse momento, formado por esse núcleo apenas e nada mais. Esta fincada, portanto, a baliza entre o “eu” e o mundo externo. O “eu” muitas vezes foi identificado ao corpo. O corpo, no entanto, pode ser visto como um conglomerado de órgãos e organismos vivos mais ou menos interdependentes. Por sua vez, então, o corpo seria mais um desses organismos vivos, formado por outros organismos vivos com relações mais ou menos interdependentes, que formam outros organismos maiores que incluem, por exemplo, o próprio habitat. Por que, nesta ótica, o “eu” não poderia constituir-se do local que resido, do ar que respiro, do alimento que ingiro? Não nos interessa aqui estabelecer uma fronteira exata entre o “eu” e o mundo externo, se é que esta existe. Interessa-nos unicamente o “eu” simbólico presente no imaginário dos indivíduos. Portanto, definir a idéia de vida que repousa (ou se agita) por trás da mitologia acima passa necessariamente pela identificação das características a preservar na imortalidade e nos apontará um caminho na descoberta do “eu”.

No mito de Frankenstein renovado há uma valorização da atividade intelectual e sensorial em detrimento do corpo físico. O corpo físico é descartável, podemos prescindir dele para alcançar a imortalidade, mas não podemos prescindir de nossa capacidade de pensar, mas principalmente de julgar à luz das nossas memórias e experiências, e de sentir. No entanto, a simbologia deste mito é rica e não se limita a esta conclusão. Devemos ir além, desconstruir cada um desses anseios e dar à luz a sua historicidade.

Certamente, perpetuar o pensamento e as sensações é objetivo principal. Contudo, podemos afirmar que existe uma preocupação constante na mitologia em questão com a seleção dos sentimentos a serem preservados e com a memória. Esta última é uma espécie de elo entre aquilo que representou nossa “primeira existência”, tal qual fora “disposto pela divina providência”, e a existência ulterior gerada pela “profana ciência”. Somente a memória caracteriza de fato a perpetuação deste “eu” que queremos identificar, pois sem ela estaríamos falando de pensamentos aleatórios que se sucedem ao longo do tempo sem nenhuma relação. Por outro lado, está patente nas duas formas de ressurreição citadas na nossa parca descrição uma preocupação em destilar dentre as sensações somente aquelas relacionadas ao prazer. Ninguém almeja perpetuar o sofrimento. A criação de um mundo virtual programável ou a construção genética ou biomecânica do corpo são sintomáticos a esse respeito. Uma realidade virtual amigável e prazerosa representa dignamente o que buscamos expressar ao falar em seleção das sensações. Também a construção de um novo corpo traz em seu germe essa idéia, visto que em geral está associada ou ao aprimoramento genético do corpo ou à construção de um modelo mecânico perfeito. De qualquer modo, podemos concluir que o sofrimento está excluído do núcleo que se deseja perpetuar. É possível que o desejo de imortalidade inclua certas dores, angústias e pequenos incômodos, que, ao escolher um mundo virtual no menu de ofertas do “provedor”, alguém optasse por viver em um país de terceiro mundo, em uma cidade como São Paulo, pertencer à classe média com todas as angústias e contratempos que esse modo de vida acarreta, com as dores cotidianas, flatulências, alergias, etc. Mas é bastante improvável que optasse por viver na miséria, com uma história cheia de perdas, doenças e injustiças, a menos que se tratasse de uma curiosidade mórbida e um espírito lúdico, afinal, poderíamos viver inúmeras vidas!

Prazer e memória. Sei que se me acusará de simplista, gosto de simplificar, apesar das inúmeras críticas que este hábito tem provocado ao longo de minha vida. Mas creio que, de certa forma, aí podemos apontar a noção de vida e, conseqüentemente, de “eu” que reflete o mito de Frankenstein renovado. É o momento de submeter esta conclusão a todo tipo de críticas, questionamentos e torturas. Façamo-la falar! Se puder se sustentar por si só, ótimo, teremos que aceitá-la malgrado o desprazer que nos cause.

Antes de iniciar a sabatina, é necessário chamar a atenção para um fato propositadamente negligenciado até aqui, mas assaz ruidoso para deixar-se relevar. Além da capacidade de pensar e sentir, a capacidade de expressar-se também é uma espécie de requisito para a imortalidade. A possibilidade de julgar, opinar e, principalmente, ser ouvido (e aclamado se possível) aparece como uma exigência inconteste das nossas pretensões de imortalidade na mitologia em questão. Não acredito que um indivíduo fosse capaz de almejar uma vida à margem, tomada por pensamentos e sensações, mas que não lhe permitisse compartilhar esta experiência com outrem tal qual um eremita perdido nas montanhas. Sinceramente, penso que todo eremita precisa fazer certa fumaça no cume de sua solidão, Zaratustra deve voltar. Mas não entrarei neste mérito. O que importa dizer aqui é que a capacidade de expressar-se não pode ser colocada na mesma categoria de prazer e memória, por uma razão simples. Expressar-se, no contexto que aqui foi descrito, ou seja, como forma de compartilhar (impor) sensações próprias aos demais, está intrinsecamente ligado à sensação de prazer. É uma forma de obtenção de prazer. Portanto, se citássemos esta necessidade em nossa máxima simplificação estaríamos cometendo um erro de hierarquização e abriríamos uma brecha à entrada de outras características, comprometendo, destarte, a solidez da própria simplificação.

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1 Comentários:

Às 19 de outubro de 2010 às 17:38 , Blogger Luciane Godinho disse...

Acho que expressar/criar (na maioria dos casos, tão prazeiroso quanto doloroso) é bem distinto de um outro momento que é o da fruição. Criar/expressar é solitário.

 

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