Já estava por terminar seu habitual banho noturno quando se
permitiu três minutos de água quente batendo-lhe nas costas, três minutos estes
que em muito ultrapassavam sua tolerância a desperdícios desnecessários,
afinal, a conta de luz, a crise energética do planeta, os recursos hídricos
cada vez mais ameaçados... Ainda assim, Francisco julgou que se justificava
aquele luxo com a contratura no trapézio que mal o deixaria dormir e deixou-se
quedo sob a água morna abandonado a alguns pensamentos desordenados.
Interrompeu a massagem, no entanto, um calafrio inesperado, provocado por um
sopro que a princípio atribuiu aos esporádicos ventos cuspidos entre sol e sol
pelo tímido inverno daquelas zonas tropicais. Mas logo soube que a apoucada
fresta da janela muito deveria esforçar-se para engolfar o ar quieto da rua e
que o sopro não era qualquer fenômeno eólico, mas sim sua outra vida possível
insinuando-se por entre a cortina de água que o rodeava e tocando-lhe a pele
úmida até eriçar-lhe cada um de seus poros.
Reconheceu todos os longos anos que não vivera, cada uma de
suas alegrias possíveis, sorrisos alheios a seu cotidiano, mas que ainda podia
recordar. Não foi capaz de descrever com precisão nada do que sentira, eram
amores, outras cores, outro penteado, outra cidade e seus vícios, amores? Outra
vida possível, com certeza. Saiu do banho, resoluto, envolto na toalha e na
esperança de mudar. Mudaria, de cidade, de vida, de trabalho, de hobbies, de
si. Não havia mais dúvida de que largaria tudo, lembrou-se de Fabio. Aos 35,
abandonara o banco, uma carreira estável, uma casa confortável, alimentos
orgânicos assepticamente embalados, e foi ao interior estudar botânica. A
família não aceitou a decisão e o esqueceu, aos poucos já não era mais que
ausência proibida. Escreviam-se ainda, embora muito pouco se pudessem contar,
quase sempre algumas opiniões sobre plantas e flores, única paixão em comum. Largaria
tudo ele também.
Meticuloso como sempre, Francisco terminou de vestir-se e
antes de deitar-se apanhou uma caderneta para começar a planejar como largaria
tudo, afinal, largar tudo não poderia ser um simples rompante insone e exigia
um exaustivo planejamento. Decidiu pôr em ordem, portanto, cada uma das coisas
que deveria abandonar. Devia avisar na repartição, afinal Miranda ficaria algo
sobrecarregado com sua ausência, começaria por notar que a pilha de planilhas
em sua mesa aumentava inexplicavelmente. Cruzava-se com Miranda duas vezes ao
dia, quando este chegava às 9 e se retirava á 17 pontualmente. Tinha dúvidas se
saberia seu nome. Certa vez lembrava-se de tê-lo ouvido dizer seu sobrenome,
mas não seu nome. O único indício de sua ausência seria, portanto, o acúmulo de
planilhas sobre a mesa de Miranda, que este tardaria em compreender, mas logo
ligaria ao departamento de RH para solicitar um novo concurso, pois
aparentemente o quadro atual não dava conta do trabalho.
Também seria necessário desligar-se da academia. Todos os
dias, pontualmente às seis da manhã terminava de soltar a musculatura dos
bíceps e mergulhava na água ainda adormecida da piscina tratada com ozônio.
Preguiçosas, as águas se abriam e tumultuavam-se ao seu redor. Pouco depois,
chegava Cristina, senhora com quem mantinha uma secreta disputa por melhores
índices de assiduidade. Em três anos de natação, nem sequer o professor
apresentara-se mais vezes que os dois dedicados alunos, a quem nem ferrenhas
febres eram capazes de afastar. Secretamente cada um deles esperava que o outro
faltasse, para dar-se por vitorioso e permitir-se hábitos mais lassos. Nenhum, no
entanto, cederia tão facilmente. Podia imaginar o júbilo de Cristina quando
enfim encontrasse a tíbia água ainda quieta a esperá-la e a desbravasse por
dois mil solitários metros sem seu secreto rival. Teve que reconhecer que seria
duro abandonar assim a disputa.
À academia, seguia na lista, o apartamento. Comprado havia 5
anos, ainda não estava completamente reformado e decorado. Começava agora a
ficar a seu gosto, mesmo que ainda faltasse a escrivaninha no quarto e o
aparador na sala. Não seria difícil alugá-lo, mesmo mobiliado, bastava ligar
para o Bira, excelente corretor que intermediou a própria compra. Certamente
não tardaria em alugá-lo, mas talvez fosse melhor mesmo vendê-lo e
desvencilhar-se de qualquer vínculo com aquela vida. Falaria com Bira, era
melhor anotar.
Os bonsais, poderia, é claro, levá-los. Eram pequenos, mas
eram tiranos. Exigiam dele um cuidado diário, doses exatas de água, sol, e
pequenas podas. Amava seus bonsais tanto quanto os odiava. Mais de uma vez
trocara seu almoço por uma hora de trânsito para voltar a casa e verificar se
estavam superexpostos à luz ou se lhes faltava água. Talvez fosse melhor
deixá-los... mas não podia permitir que simplesmente morressem, depois de
tantos cuidados. Talvez o japonês da floricultura os quisesse. Falaria com ele,
era melhor anotar.
Restava apenas planejar o que fazer com os amigos.
“Amigos:”, anotou no alto da página seguinte. Ergueu o lápis e o rodou entre os
dedos, perdendo-se alguns instantes em sua destreza. Engraçado como ainda
conseguia preservar aquela habilidade desenvolvida nos tempos de escola,
enquanto nas aulas de física girava o lápis entre os dedos, sonhando ser Bruce
Lee ou Chuck Norris girando seu nunchako. “Fabio”, anotou na linha seguinte.
Não precisaria avisar-lhe, bastava mudar o endereço da correspondência, já havia
muito que apenas se falavam por carta. Voltou a girar o lápis. Simone e Walter,
fazia tempo que não se falavam. Não sabia se tinha ainda o número. No
restaurante, a Vanessa, garçonete com quem sempre trocava alguns gracejos,
sentiria sua falta. Talvez fosse o caso de avisar-lhe, seria um sorriso a menos
em sua rotina no self-service.
Ainda esperou alguns instantes, no afã de lembrar-se de
detalhes ignorados, mas o sono, adestrado às 11, começou a impor-se. Decidiu
revisar a lista antes de dormir:
- Avisar Miranda.
- Encerrar academia.
- Ligar para Bira (apê)
- Falar com japonês (floricultura)
- Amigos: Fabio (correspondência). Simone e Walter? Vanessa
(restaurante)
Não faltava nada e nada, enfim, havia para largar. Decidira,
depois de um inesperado sopro de ar, provavelmente uma corrente de vento
sussurrada na noite do incipiente inverno, que teimara em interpretar como um
mesto sinal, que tudo (nada) deveria largar. Melhor era dormir, que amanhã
deveria acordar cedo, a tempo de preparar sua vitamina de frutas, apanhar a
toca, a sunga, os óculos e a toalha verde desbotada para não se atrasar para a
natação. Chegou cinco minutos antes das seis. Aproveitou os cinco minutos para
soltar a musculatura ainda tensa. O trapézio ainda doía. Deixou os bíceps para
o final e, quando chegou, com os olhos ainda marejados, o professor o autorizou
a entrar na água tíbia e adormecida. Mergulhou e nadou seus habituais dois mil
e trezentos metros. Cristina não apareceu. Parece, segundo dizia o professor,
que esta gripe era mais forte que a habitual, era melhor cuidar-se, pois
chegava o inverno.