sábado, 28 de abril de 2012

Uma nova abordagem para a questão etária

Proponho aqui uma mudança algo drástica, porém de certa forma premente. Escrevo esta carta aberta com a esperança de que altas autoridades da ONU, UNESCO ou, por que não, da própria Divina Providência, inteirem-se de minha propositura. Sem mais, passemos ao objeto da dita, a saber, a peremptória substituição dos segundos pelos batimentos cardíacos como medida de tempo hegemônica que, desconsiderando seus infinitesimais fracionamentos, isto é, décimos, centésimos, milésimos de segundo, e assim sucessivamente, adentrando nas ridículas grandezas que Aquiles tanto subestimou, servem de unidade básica para pautar a nossa trajetória, se tal termo pode, de fato, aplicar-se aos nossos desvairados intentos, nesta vida. Enfim, propõe-se aqui que o segundo não mais constitua a contagem que, agregada em um conjunto de sessenta, nos conduz ao minuto que, por sua vez, multiplicado por sessenta define a hora que, somada a outras vinte e três, rendem-nos um dia e assim sucessivamente até constituir as semanas, os meses, os trimestres, semestres, anos e a morte. Certamente, os mais ortodoxos alegarão que seria uma temeridade e um verdadeiro atentado contra a objetividade científica acatar uma tal propositura, posta a impossibilidade de determinar um consenso de frequência cardíaca média aceitável como padrão de medida do tempo que pudesse eventualmente nos prover um parâmetro unificado para a passagem do tempo. A tais retrógrados retorquirei, posto que o tempo presente deste verbo é abolido na conjugação em prol, muito provavelmente, do bom gosto fonético ou da evitação da confusão com outro verbo similar, retorco, no primeiro caso, e retorço, no segundo, mas dizia-se que retorquirei que somente os tolos podem de fato acreditar na objetividade do tempo, paute-se este pelos segundos, nanossegundos, ou qualquer outra unidade que possamos conveniar. Assim, esquecem-se os eventuais defensores do segundo que esta unidade vivida por um burocrata satisfatoriamente acomodado em sua ergonômica cadeira e devidamente munido de um multicolorido carimbo, de data variável, poderá decorrer de forma completamente diferente de como o fará para um sertanejo a galope em seu corcel, para um carroceiro à cata de papelão, alumínio, outros itens de valor questionável ou cestas básicas doadas por fotógrafos que, após tirar-lhes uma foto dotada de crítica social e fortes fatores estéticos, especialmente na composição em preto e branco, oferece-lhas, tomado por uma exigência da consciência cultural e historicamente construída, dada sua educação carregada de um legado ocidental judaico-cristão, e, para limitar-nos em nossos exemplos, embora admitamos a infinidade destes, finalizamos com o caso de um cão, raça poodle, que em seu travesseiro, um dos tantos dos quais dispõe e sobre os quais constantemente urina para desespero de seus donos, mas assim o faz em uma cega obediência a instintos ancestrais, observa com sua respiração serena o frenético digitar da presente propositura, imaginemos o que será para este o decorrer de um segundo e, em todos os casos aqui citados, abstenha-se, por favor, o leitor, assim como o fez o autor, de qualquer julgamento de valor. Toda esta miríade ilustrativa nada mais serviu para demonstrar aos adversários da presente sugestão, que a objetividade à qual se apegam em seus argumentos é falsa e é justamente esta falsidade que consubstancia a motivação deste documento. O tempo calculado por batimentos cardíacos nos dará a justa e exata medida da vida do indivíduo: mais idade terá aquele que mais tiver amado, e com mais frequência tiver observado o disparo descontrolado e inexplicável do coração diante do aparecimento repentino, real ou imaginário, da figura amada. Também será mais idoso aquele que o medo, o sobressalto, a paúra, o susto ou qualquer outro sinônimo aplicável, tiver tomado, quer seja por razões justificáveis, tais como um iminente perigo à sua própria vida ou à vida da referida figura amada, seja este de natureza fisiológica, patológica, climática, sismal, eólica, hídrica, físico-mecânica, química, biológica ou de qualquer outra aqui não citada, ou razões injustificadas como fobias, ignávias, o pânico, a poltronaria, diante de ameaças imaginárias como borboletas, teias de aranha, palitos de fósforo, comida enlatada, palhaços, medos estes que, em geral, resultam de uma desordem psicológica, quando não se embase tal pavor no fato de se tratar de uma borboleta verdadeiramente peçonhenta, uma teia de aranha aplicada sobre o umbigo de um recém-nascido, provocando o mal do sétimo dia, denominação mais popular do tétano, ou riso sardônico, de o fósforo ser empregue para a ignição de uma periclitante quantidade de pólvora, gasolina, óleo ou outra substância inflamável, a comida enlatada não estar em condições ideais de preservação e apresentar substâncias botulínicas, não em acondicionamento e quantidade que sirva para fins estéticos, esclareçamos logo antes que vaidosas senhoras se atirem ávidas sobre o corredor de enlatados dos supermercados no intuito de baratear os seus custos com tratamentos com a dita finalidade, ou, para esgotar nossos limitados exemplos, desde que o nariz vermelho ou preto, de plástico, silicone ou mesmo pintado, dos referidos palhaços, não oculte, na verdade, como sói acontecer, bem se sabe, psicopatas em potencial ou efetivos em busca de pueris vítimas para suas atrocidades. Além do medo e do amor, como se dizia acima, outros fatores que acarretem uma aceleração do batimento cardíaco, tais como, a prática de esportes, o estresse emocional, a desidratação, hipertermia, o consumo de entorpecentes, medicamentos ou drogas, também levarão à ancianidade do indivíduo sujeito a tais fatores. Da mesma forma, e novamente urge-se para a abstenção de qualquer julgamento de valores, aquele indivíduo que ao fim da vida tiver menos episódios amorosos, temerários, de estresse físico ou emocional, ou, ainda, qualquer indivíduo que perante qualquer uma das referidas situações, quer seja por uma disfunção fisiológica ou um invejável controle monástico da frequência cardíaca, mantiver os batimentos em níveis inferiores, poderá ser considerado um elemento mais juvenil e, de novo, insto para a necessidade de abster-se de qualquer julgamento de valor. Assim sendo, aceite esta propositura, não mais teríamos como parâmetro de idade, ponderadas já as implicações desta mudança para o sistema previdenciário, as estatísticas demográficas e a legislação relativa aos direitos do cidadão idoso, o número de anos vividos pelo indivíduo nem menos o número de batimentos médios calculado com base em um valor médio de 115.200 batimentos por dia que, nesta mesma base, dar-nos-ia que um elemento que completasse 63 anos dos atuais, constituídos por 365 dias, mais aqueles derivados dos anos bissextos, neste caso aproximadamente 15, teria vivido 2.650.838.400 batimentos cardíacos médios. Este número médio, porém, nada mais seria que uma forma de contentar os supracitados ortodoxos antagonistas da atual propositura. Insta-se novamente sobre a necessidade de obter a idade de cada indivíduo pelo número de batimentos cardíacos reais e, desta forma, o mesmo elemento que no nosso exemplo completara 63 anos poderia dizer que viveu 3.836.944.290 batimentos ou menos fosse ele o já referido burocrata, o sertanejo, o carroceiro ou o poodle, consentida, neste último caso, a impossibilidade de uma tal grandeza, mesmo que se em vez de um poodle estivéssemos a falar de um galgo ou winpit empregue em constantes corridas. Muitos seriam os inconvenientes, admite-se, da drástica mudança, face às dificuldades de contar os batimentos cardíacos para a população que não dispusesse de dispositivos adequados para a medição desta frequência, visto que obrigá-la a manter uma contagem mental destes, embora pudesse mostrar-se uma medida útil para conter os índices de desocupação sabidamente ameaçadores para o sistema de produção atual, poderia levar a um envelhecimento precoce incidental da dita população, considerada a possibilidade de que a herculeana tarefa conduzisse a crises de ansiedade que, por sua vez, provocariam a indesejada aceleração dos batimentos cardíacos. Admite-se também a inconveniência de manejar números tão elevados e o correspondente aumento no uso de papel e a consequente ampliação do desflorestamento, dada a necessidade do aumento de tamanho dos formulários-padrão amplamente empregues quer seja no âmbito jurídico, comercial, médico ou administrativo, para acomodar grandezas bilionárias. Por outro lado, não se pode subestimar os ganhos psicológicos de aumentar a cifra da expectativa média de vida de setenta e poucos anos para bilhões de batimentos. Claro está que esta é uma proposta incipiente que procura levantar os benefícios da supramencionada troca, uma vez mais circunstanciemos, dos parâmetros de tempo habituais caracterizados pela divisão do tempo em segundos, minutos, horas, dias, semanas, meses, anos, décadas, etc., por um sistema baseado exclusivamente nos batimentos cardíacos, mesmo diante das já admitidas inconveniências e objeções, por julgar-se que as vantagens de tal sistema em muito ultrapassariam os deméritos por estas últimas provocados. Assim também se justificaria que, observando o tempo passar imune aos silenciados desejos, sonhos e impulsos, autores de inócuas e prolixas propostas, sabidamente absurdas, pudessem acelerar o seu coração numa batalha linguística fadada a não ser mais que outra ignota e derrota contenda esquizofrênica, no sentido figurado, claro está.

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