segunda-feira, 23 de março de 2009

Dom Soturno escreveu em 03 de março de 2002

Como não sabia pintar, escreveu...

O grito

Meus olhos estão vendados
desde que vi que não eram tantas as cores
Ensurdeci quando os sons de meus passos,
as palavras e a respiração ofegante
se tornaram um só ruído
monótono e frio.
A voz calei ao ver
minhas próprias palavras, de vidro,
rompendo-se entre ouvidos surdos.
Meus pés me negam outro passo e,
contudo, um grito estridulante
insiste em percorrer-me,
empurrar meus dentes semicerrados.
Flor espinhosa... insiste
empurra o sangue pelas veias
há muito secas.
E hoje pensei que meu grito ecoaria,
resvalaria... pensei...
Mas não...
Silencioso como ontem,
incólume e inconteste,
mudo e frenético
eloquente e lacônico
sorriso lento, ruga de expressão,
lá vai como ontem o grito natimorto.

sábado, 14 de março de 2009

Onde estava?

Não, não está em Heidegger, nem em Nietzche ou Schopenhauer. Não está em Dostoievski, Tolstoi, Wilde.... Merda... onde foi parar... Sempre que a gente precisa de alguma coisa some. Estava tudo pronto lá, assim não perco mais tempo e acabo logo com isso tudo.

De onde veio?

Acho que copiei este trecho de algum lugar e, graças a meu mau hábito de não anotar referências, não lembro de onde. Alguém sabe? Ou terei inventado isso?

"O laxismo de seu passado contrastava com aquele autoritarismo discricionário com que cominava seus próprios valores.
Não é de se surpreender, pois não é raro que o tempo e as vicissitudes da vida acabem por dissipar o laxismo de nossos verdes anos para dar lugar a uma austeridade prática, indispensável nas situações em que os sonhos já não bastam para alimentar nossos dias."

terça-feira, 3 de março de 2009

Carta a uma amiga que os tempos afastaram

Certa noite voltávamos de alguma de nossas várias reuniões, era tarde e eu, para variar, estava com fome. Conversávamos no carro e comentei que eu não gostava muito de hambúrgueres e esse tipo de comida. Menos de cinco minutos depois, decidindo aonde ir, vc sugere hambúrguer no Joakin`s. Aquilo não me incomodou, divertiu-me até, pois havia o afeto. Eu sabia que vc não podia me ouvir, talvez ver, pois o tempo a ensurdecia... A presença jamais era satisfatória, vc sempre precisava estar em outro lugar, em outro tempo, mesmo que seus olhos estivessem voltados para mim. Eu conhecia isso, mas havia o afeto, até me divertia e gostava de acompanhá-la nesse frenesi sem razão. Hoje, lembrei-me desse episódio e o que veio foi uma sequência de sentimentos, a saudade, a nostalgia, a tristeza...
A saudade existe com a esperança do retorno, a esperança de reencontrá-la; a nostalgia é a agridoce lembrança do que foi e não mais será e a tristeza é o que resta hoje, pois vivemos em tempos distintos. O afeto, afeto intenso nascido do acaso, do encontro, mostrou-se volúvel e transmutou-se em tristeza nesse intransponível lapso. São dimensões distintas de tempo, um tempo tirano, despótico que organiza e manipula nossos corpos para além da nossa vontade. O tempo das reuniões inadiáveis, dos compromissos inapeláveis, dos projetos pendentes. O tempo finito que escraviza para dar sentido ao que não podemos suportar.
Conheci outro tempo recentemente, queria que você soubesse, o tempo que se fragmenta, se divide ad infintum, cada fragmento pode ser a metade do anterior, é um tempo que se expande eternamente para dentro. É o tempo no qual cavamos os buracos, lembra do buraco de que falava Desnoes? Ninguém tem tempo mais para cavar buracos, dizia. Mas quando se cai no buraco, não resta mais que cavar. Com minhas unhas enfraquecidas, arranho as paredes de barro úmido para subir. Entre as unhas e a pele dos dedos, os resquícios, a saudade, a nostalgia e, enfim, a tristeza. Penso, então, em deixar na portaria de seu prédio os seus livros que estão comigo, inumar nas mãos do porteiro o afeto que eu não queria ter tido e tive. Penso, também, em deixar esta carta com eles, imaginando que você não terá tempo de lê-la ou na esperança de que se a ler poderá ignorá-la e agir com a indiferença que o tempo nos permite ter.