sexta-feira, 3 de julho de 2015

Vento de inverno

Já estava por terminar seu habitual banho noturno quando se permitiu três minutos de água quente batendo-lhe nas costas, três minutos estes que em muito ultrapassavam sua tolerância a desperdícios desnecessários, afinal, a conta de luz, a crise energética do planeta, os recursos hídricos cada vez mais ameaçados... Ainda assim, Francisco julgou que se justificava aquele luxo com a contratura no trapézio que mal o deixaria dormir e deixou-se quedo sob a água morna abandonado a alguns pensamentos desordenados. Interrompeu a massagem, no entanto, um calafrio inesperado, provocado por um sopro que a princípio atribuiu aos esporádicos ventos cuspidos entre sol e sol pelo tímido inverno daquelas zonas tropicais. Mas logo soube que a apoucada fresta da janela muito deveria esforçar-se para engolfar o ar quieto da rua e que o sopro não era qualquer fenômeno eólico, mas sim sua outra vida possível insinuando-se por entre a cortina de água que o rodeava e tocando-lhe a pele úmida até eriçar-lhe cada um de seus poros.

 Reconheceu todos os longos anos que não vivera, cada uma de suas alegrias possíveis, sorrisos alheios a seu cotidiano, mas que ainda podia recordar. Não foi capaz de descrever com precisão nada do que sentira, eram amores, outras cores, outro penteado, outra cidade e seus vícios, amores? Outra vida possível, com certeza. Saiu do banho, resoluto, envolto na toalha e na esperança de mudar. Mudaria, de cidade, de vida, de trabalho, de hobbies, de si. Não havia mais dúvida de que largaria tudo, lembrou-se de Fabio. Aos 35, abandonara o banco, uma carreira estável, uma casa confortável, alimentos orgânicos assepticamente embalados, e foi ao interior estudar botânica. A família não aceitou a decisão e o esqueceu, aos poucos já não era mais que ausência proibida. Escreviam-se ainda, embora muito pouco se pudessem contar, quase sempre algumas opiniões sobre plantas e flores, única paixão em comum. Largaria tudo ele também.

Meticuloso como sempre, Francisco terminou de vestir-se e antes de deitar-se apanhou uma caderneta para começar a planejar como largaria tudo, afinal, largar tudo não poderia ser um simples rompante insone e exigia um exaustivo planejamento. Decidiu pôr em ordem, portanto, cada uma das coisas que deveria abandonar. Devia avisar na repartição, afinal Miranda ficaria algo sobrecarregado com sua ausência, começaria por notar que a pilha de planilhas em sua mesa aumentava inexplicavelmente. Cruzava-se com Miranda duas vezes ao dia, quando este chegava às 9 e se retirava á 17 pontualmente. Tinha dúvidas se saberia seu nome. Certa vez lembrava-se de tê-lo ouvido dizer seu sobrenome, mas não seu nome. O único indício de sua ausência seria, portanto, o acúmulo de planilhas sobre a mesa de Miranda, que este tardaria em compreender, mas logo ligaria ao departamento de RH para solicitar um novo concurso, pois aparentemente o quadro atual não dava conta do trabalho.

Também seria necessário desligar-se da academia. Todos os dias, pontualmente às seis da manhã terminava de soltar a musculatura dos bíceps e mergulhava na água ainda adormecida da piscina tratada com ozônio. Preguiçosas, as águas se abriam e tumultuavam-se ao seu redor. Pouco depois, chegava Cristina, senhora com quem mantinha uma secreta disputa por melhores índices de assiduidade. Em três anos de natação, nem sequer o professor apresentara-se mais vezes que os dois dedicados alunos, a quem nem ferrenhas febres eram capazes de afastar. Secretamente cada um deles esperava que o outro faltasse, para dar-se por vitorioso e permitir-se hábitos mais lassos. Nenhum, no entanto, cederia tão facilmente. Podia imaginar o júbilo de Cristina quando enfim encontrasse a tíbia água ainda quieta a esperá-la e a desbravasse por dois mil solitários metros sem seu secreto rival. Teve que reconhecer que seria duro abandonar assim a disputa.

À academia, seguia na lista, o apartamento. Comprado havia 5 anos, ainda não estava completamente reformado e decorado. Começava agora a ficar a seu gosto, mesmo que ainda faltasse a escrivaninha no quarto e o aparador na sala. Não seria difícil alugá-lo, mesmo mobiliado, bastava ligar para o Bira, excelente corretor que intermediou a própria compra. Certamente não tardaria em alugá-lo, mas talvez fosse melhor mesmo vendê-lo e desvencilhar-se de qualquer vínculo com aquela vida. Falaria com Bira, era melhor anotar.

Os bonsais, poderia, é claro, levá-los. Eram pequenos, mas eram tiranos. Exigiam dele um cuidado diário, doses exatas de água, sol, e pequenas podas. Amava seus bonsais tanto quanto os odiava. Mais de uma vez trocara seu almoço por uma hora de trânsito para voltar a casa e verificar se estavam superexpostos à luz ou se lhes faltava água. Talvez fosse melhor deixá-los... mas não podia permitir que simplesmente morressem, depois de tantos cuidados. Talvez o japonês da floricultura os quisesse. Falaria com ele, era melhor anotar.

Restava apenas planejar o que fazer com os amigos. “Amigos:”, anotou no alto da página seguinte. Ergueu o lápis e o rodou entre os dedos, perdendo-se alguns instantes em sua destreza. Engraçado como ainda conseguia preservar aquela habilidade desenvolvida nos tempos de escola, enquanto nas aulas de física girava o lápis entre os dedos, sonhando ser Bruce Lee ou Chuck Norris girando seu nunchako. “Fabio”, anotou na linha seguinte. Não precisaria avisar-lhe, bastava mudar o endereço da correspondência, já havia muito que apenas se falavam por carta. Voltou a girar o lápis. Simone e Walter, fazia tempo que não se falavam. Não sabia se tinha ainda o número. No restaurante, a Vanessa, garçonete com quem sempre trocava alguns gracejos, sentiria sua falta. Talvez fosse o caso de avisar-lhe, seria um sorriso a menos em sua rotina no self-service.

Ainda esperou alguns instantes, no afã de lembrar-se de detalhes ignorados, mas o sono, adestrado às 11, começou a impor-se. Decidiu revisar a lista antes de dormir:
 
- Avisar Miranda.

- Encerrar academia.

- Ligar para Bira (apê)

- Falar com japonês (floricultura)

- Amigos: Fabio (correspondência). Simone e Walter? Vanessa (restaurante)

 Não faltava nada e nada, enfim, havia para largar. Decidira, depois de um inesperado sopro de ar, provavelmente uma corrente de vento sussurrada na noite do incipiente inverno, que teimara em interpretar como um mesto sinal, que tudo (nada) deveria largar. Melhor era dormir, que amanhã deveria acordar cedo, a tempo de preparar sua vitamina de frutas, apanhar a toca, a sunga, os óculos e a toalha verde desbotada para não se atrasar para a natação. Chegou cinco minutos antes das seis. Aproveitou os cinco minutos para soltar a musculatura ainda tensa. O trapézio ainda doía. Deixou os bíceps para o final e, quando chegou, com os olhos ainda marejados, o professor o autorizou a entrar na água tíbia e adormecida. Mergulhou e nadou seus habituais dois mil e trezentos metros. Cristina não apareceu. Parece, segundo dizia o professor, que esta gripe era mais forte que a habitual, era melhor cuidar-se, pois chegava o inverno.