segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Rua 8

Lembranças, esquecimentos ou invenções, pontos soltos como os nós dos cadarços do sapato dessolado do andarilho sem rumo. Era una vez un gato montés que tenía la cola al revés y sabía hablar en inglés y decía yes, yes, yes, si querés te lo cuento otra vez. Sí. E assim continuariam eternamente ou até que a mãe se cansasse enquanto a neve acariciava a janela. Cruzada a fronteira, o idioma já é outro, faz calor, é carnaval, a casa, uma república de estudantes emprestada durante o feriado, está vazia. Uma grande janela ou porta de vidro deixa entrar a luz que faz brilhar meus brinquedos espalhados pela pequena sala, ocupo-a como um gás. No chão também meus desenhos, herculanos heróis, vilões inclementes, casas e o silêncio que não exige idioma. Não vi meus pais chorarem.
Terminado o feriado, chega a negra, a faxineira negra que não nos conhecia, mas não estranha nossa presença. Nossos olhos verdes arregalam-se, jamais viramos uma negra em pessoa. Limpam, ela e minha mãe, sem se comunicar. Não sei o que fizeram com meus brinquedos. Minha mãe lavava minha roupa e a escorria com toda sua força, a negra se aproxima, diz-lhe algo, incompreensível, toma a peça de sua mão e escorre com colossal força, devolvendo o pano seco. Olhos verdes arregalados.
O pai conseguiu casa, aluguel barato, ninguém quer aquela casa que carrega o fardo de um homicídio, o marido matou a mulher, defesa da honra, seria? Ninguém quer morar lá. Nós queremos. A casa não é grande, o terreno sim e tem um pé de jaca. Nado numa piscina vazia, ainda assim com bóias. Meus avós, de visita, refrescam-se na piscina vazia do calor brasileiro. Há espaço para meus desenhos, enormes, são tantos heróis e vilões, uma guerra em traços pueris. Com meu capacete de plástico circulo de bicicleta pelo enorme terreno; também minha irmã corre, já tem amigas e se entendem. Mas aparece a temível ameaça, uma gata rueira se instala em nosso jardim, não podemos sair, assusta-me. Meus pais decidem ficar com ela, para que percamos o medo.
Um dia jogo-lhe um queijo, atrevo-me até a porta. Outro dia, assomo a cabeça ao lado de fora, noutro, ainda, já estou lá fora e a gata, sedutora, mia. Atrevo-me a tocá-la. É nossa gata. Gata fiel, nada especial, branca e manchas pretas, mas gata rueira agora é de casa e anda livre em nosso terreno. Anda livre em suas quatro patas, até que as de trás deixam de andar. Pobre gata arrasta-se em duas patas, mas continua lá, agora já tem crias. Arrasta-se pelo resto de sua não longa vida.
“A bola é bonita”, força-me minha mãe a repetir, com seu sotaque hispânico, enquanto lê a frase no meu livro pré-escolar. Ela insiste, mas explico-lhe que não quero aprender a ler, que quero ser analfabeto. Ironia da vida, hoje somente sei escrever e jogar bola. Luzia, negra, faz todas as minhas vontades, leva-me à escola no colo, porque não quero andar até lá. Na escola não me entendem, a professora não me deixa ir ao banheiro, “quiero ir al baño, le digo a la maestra y me dice que ‘banho’ sólo en casa”.
Mudamos. Chegamos à rua oito, rua deitada no infinito. Lá estão Flávia e Maura, vários terrenos baldios e a rua tranquila. Plantamos uma árvore na frente da casa, um graveto imberbe ao sol, defende-se bem e cresce. Em casa, os gatos, vinte, se reproduzem. Mimi nasce no dia de meu aniversário, gata-cachorro, fiel e me entende, é a única que não chia quando o veterinário lhe aplica a vacina.
Flávia, Maura e eu, sentados na jangada no meio do furibundo mar, uma lona no jardim de grama. Eu lhes conto que não podemos descer da jangada, pois quimeras, monstros, tubarões nos espreitam, elas acreditam e tremem. Não saem da lona. Eu saio, cobram-me explicações, digo que eu posso, pois conheço bem os caminhos e sei safar-me das ameaças. Elas ficam o resto da tarde, até que a ameaça da noite torna-se maior. Flávia e Maura me tratam quando eu fico doente, cobrem-me a testa com panos frios para baixar a febre. O mal-estar é compensado pelo afago. Um dia as chamo, dizendo que tinha febre, cuidam-me e só horas depois conto que era mentira. Riem e esbravejam.
Na rua oito, rua deitada ao infinito, não passam quase carros, é nossa. Jogamos futebol de portão, vôlei de portão, queimada, alerta. Pequeno e resvaladiço, jamais me acertam. Chega Cristiane. Maior que eu, maior que Flávia, Cristiane...
Fica decretado que Cristiane é minha namorada, sabem-no todos na rua, Flávia também e a odeia. Certa vez quase até nos beijamos, ou nos beijamos? Quando já anoitece, Cristiane me diz que a espere, que entraria um minuto para tomar água. Eu sei que não voltaria, mas espero. Espero sentado no meio da rua, em frente a sua casa, acariciando a cabeça de Toddy, vira-lata da rua, manso e guardião. Preto com manchas marrons, deita-se a meu lado e esperamos Cristiane. Sabemos que ela não volta, mas esperamos a noite cair ou tombar sem dó sobre nossas cabeças. “Primeira estrela que eu vejo, se a Cristiane gosta de mim, que um cão lata ou uma porta se bata”; desesperado amante terá inventado este refrão, pois sempre há um cão latindo ou uma porta batendo, quando não? Talvez ela espreitasse pela cortina da sala e me visse esperando. Aí talvez me amasse.
A árvore cresceu, agora é nossa casa. Flávia, Maura, Igor, Cristiane, Caroline, eu, todos subimos nela, mas ninguém chega tão alto quanto eu, posso tocar o céu. E se o céu se afasta, subimos em meu telhado. Subimos no portão, escalamos o muro e chegamos ao telhado. Paula, minha irmã, cresceu demais, pendura-se na pequena pilastra sobre o muro e esta cede sobre sua cabeça. É só de raspão.
Chegam Fabinho, Laura, Renato. Chegam Léo e Tiago. As mobiletes, os tombos, as cicatrizes. A rua oito, rua deitada ao infinito, deixou suas cicatrizes em todos nós. Pontos nos quatro cantos da sobrancelha. Cristiane, Caroline e Igor vão embora. Dor, a pior das cicatrizes. Mas o futebol de rua, de campinho ficou mais competitivo, ninguém pode nos derrotar, a mim e ao Léo. Mas Léo e Tiago vão embora. Dor, cicatrizes. Fabinho, Renato e Laura vão embora... Vou embora, Flávia e Maura ficam. Dor e cicatrizes.
A rua oito, rua deitada ao infinito, já não tem terrenos baldios. Passam mais carros, somos grandes, sabemos cruzar sem problemas, Toddy morreu. Também morreram Baixinho e a Baixinha. Fui embora, e da rua oito, rua deitada ao infinito, partiu o andarilho sem rumo que agora se abaixa para amarrar melhor os cadarços.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

¿Querés fruta, Julio?

Me voy enseguida, y como dice Julio, uno se va caminando como Jano con una cabeza decapitada – la que mira hacia adelante cuando uno ya es pelado con un poco de pelo indolente en los costados, algo payaso algo del pibe despeinado – y va porque hay que seguir buscando un norte. Me pregunto si alguna vez uno fue Jano pleno con sus dos cabezas o si al menos una sola cabeza bien puesta al medio o si no para qué tantas cabezas, más valdría un buen corazón. ¿Y por qué tanto con lo del corazón? ¿Por qué justo el corazón, no un riñón, el hígado, el apéndice (tampoco sirve de nada y a veces a uno se lo sacan) o los pies, que al final son ellos que nos llevan mire adónde mire el pobre Jano? Y cuándo miraba hacia adelante la cabeza, ¿qué veía sino su propia nuca? ¿No será que se equivocaban y lo dibujaban mal? Pienso que sí, eran dos cabezas, la de atrás mirando hacia delante y la de adelante hacía atrás, hasta que las dos se cansaban de mirar a sus ojos idénticos y los cerraban para seguir pensando dónde cuernos queda el corazón. De todos modos, así lo dice Julio, y uno terminando de comer con su(s) boca(s) herida(s), antes de levantarse pregunta, por preguntar nomás, ¿querés fruta, Julio? Querrá...

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Reflexão sobre a composição na fotografia

Longe de pretender ser um ensaio ou tratado sobre o tema da composição na fotografia, este texto tem como objetivo oferecer uma breve reflexão sobre o que nos (ou melhor, “me”) leva a decidir apertar o disparador para tirar uma foto. Penso que esta reflexão é ainda mais importante hoje com a tecnologia digital, pois, como observei a partir de minha própria experiência, ter uma câmera digital capaz de registrar centenas ou milhares de fotos em um só cartão de memória, embora ofereça inúmeras vantagens para o fluxo de trabalho, acarreta um considerável risco para os aficionados por fotografia enquanto arte. Na era do filme, tirar uma foto tinha um fator de imprevisibilidade e limitação maior, pois, em primeiro lugar, dispunha-se de 36 “poses” (ou mais quando se tinha mais rolos), os custos eram muito mais elevados e as margens de erro deviam ser minimizadas. Por essa razão, fazer uma boa foto exigia um maior esmero na hora de fazer a composição. Hoje, hesitamos menos ao apontar para o assunto e disparar 30 vezes. Um dos disparos, por sorte ou tentativa e erro, poderá gerar uma boa imagem. Atenção, não estou aqui discorrendo sobre a nostalgia por tecnologias de antanho, minha intenção é analisar o que ocorre na hora de decidir tirar uma foto. No ano passado, minha primeira câmera digital Reflex foi roubada e ela já contava com mais de 17 mil disparos. Frequentemente torno a ver meu arquivo de fotos e verifico que a maioria absoluta das fotos não merecia ter sido tirada. Esta observação me levou a refletir mais sobre o ato de fotografar e, em conseqüência, sobre a questão da composição. Lembro, ainda, que se não existem as limitações do filme (em termos de custos), todas as câmeras têm uma vida útil média limitada pela quantidade de disparos. Claro que as mais avançadas têm uma vida estimada em mais de 100 mil disparos, o que é um número considerável, mas ainda assim, podemos pensar bem na hora de fazer a foto se realmente vale a pena. Quais são, enfim, as razões que nos (“me”) levam a fotografar?

O momento
A primeira destas razões talvez seja a mais evidente, a saber, a vontade de registrar um momento agradável com amigos ou parentes. Claro que este tipo de fotografia pode ter certo esmero na composição, mas em geral refere-se a fotos espontâneas para as quais, em minha opinião, mais vale usar uma câmera compacta que oferece, ainda, a vantagem de não interferir tanto no ambiente.

A beleza
Este é um termo bastante impreciso que em realidade nada define, mas, além disso, não acho que possa ser listado como uma razão isolada para a composição. Ela certamente permeia todos os outros critérios, mas talvez possa ser mais bem expressada como incitação estética. Dela falaremos adiante ao abordar outras razões.

O fato insólito ou interesse social
Uma das razões mais frequentes pela qual me decido a fotografar é o registro de um fato ou uma imagem inusitada, curiosa ou ainda que apresente um tema de interesse social. É comum que este tipo de fotografia implique um teor de crítica social, pois costuma explorar contradições. Nem sempre é possível uma dedicação delongada à composição, visto que o momento requer decisões rápidas. Embora seja possível isolar a contradição ou o fato insólito como principal componente na esfera da motivação, para que a foto atinja um maior grau de interesse, as preocupações estéticas com o resultado final evidentemente são fundamentais.
Um exemplo seria a foto abaixo (1.1). Minha ideia fora registrar a borboleta sobrevoando a área da cerca de arame farpado, apontando para uma contradição entre o seu voo livre e a intenção clara do homem de criar limites ou fronteiras entre territórios. A borboleta movimenta-se muito rapidamente. Eu não dispunha de uma teleobjetiva para fechar mais o ângulo de visão nem podia aproximar-me mais, pois havia entre nós um pé de maracujá. O céu não estava particularmente bonito e sua luminosidade era muito alta. A única solução que encontrei foi fazer a foto (imagem 1.2) com a máxima distância focal disponível (70 mm) e deixar para recortar a área de interesse depois no Photoshop (imagem 1.1). Os puristas talvez condenassem tal tratamento, mas, em minha opinião, a imagem final justifica a ação.
Outro exemplo, este obtido com uma câmera analógica, é a foto 1.3 tirada de um carroceiro. Na caçamba do caminhão lia-se a palavra esperança e as cores em si eram chamativas, o metal desgastado era atrativo, oferecendo metáforas interessantes (o desgaste da esperança talvez?). Mas o carroceiro passando ao fundo acrescentou um elemento de interesse a mais. Claro que olhando hoje para a foto, lamento não ter tido mais prática na época para tentar outros enquadramentos, mas penso que a foto expressa bem o que poderia ser a fusão de uma preocupação estética com um motivo de cunho social.

Imagem 1.1 (foto recortada)


Imagem 1.2 (foto original)


Imagem 1.3


Afeto e sensações
Outra razão importante que me leva a decidir fotografar é uma sensação ou afeto que determinada situação me transmite. Crianças brincando, o olhar de um cachorro (sou bastante cachorreiro), uma mãe amamentando, etc., podem ser bons exemplos. A foto abaixo ilustra este motivo e, novamente, não bastava registrar a cena apenas. Buscar o melhor ângulo possível, distribuir os elementos, esperar por uma boa expressão, utilizar a profundidade de campo (ver adiante) em favor de um resultado estético também foram fatores cruciais para tirar a foto.

Imagem 2.1

Formas geométricas e texturas
Muitas vezes o interesse por uma cena ou imagem não reside tanto em seu conteúdo, mas sim nas formas criadas. Claro que essa separação entre forma e conteúdo é meramente analítica, pois em termos semióticos não tem tanto sentido. Uma sequência de pilastras de concreto, por exemplo, poderia gerar um interesse estético em função da forma criada pela distribuição dos elementos, mas seria impossível isolar a torrente de significados possíveis na leitura da imagem (a intervenção do homem no espaço físico, as escolhas arquitetônicas, etc.). No entanto, no momento de decidir tirar uma foto deste tipo, as formas geométricas e as texturas são um fator decisivo e, neste caso, contam justamente os elementos como simetria e assimetria, repetição, criação de padrões, contradições de formas (pequeno-grande, curvilíneo-reto), etc.


Imagem 3.1


Imagem 3.2


Cores
De modo similar às formas geométricas, as cores em si podem motivar uma foto. Nestes casos, a cena pode apresentar interesse em função de suas cores e distribuição destas. Muitas vezes tiramos uma foto em função da harmonia das cores, da contradição entre elas, do monocronismo formado pelos elementos no quadro ou, ainda, da contradição entre um elemento de determinada cor com relação a um cenário inteiramente monocromático.


Imagem 4.1


Imagem 4.2


Luzes e sombras
Como nos dois assuntos anteriores, também a luz e a sombra podem motivar uma foto: os desenhos que uma determinada luz cria em um ambiente, as sombras que gera, a contradição entre luz e sombra, etc.


Imagem 5.1


Imagem 5.2


Natureza
Nas fotos de natureza fica extremamente patente a esterilidade de isolar todos os elementos relacionados até aqui com intuito meramente analítico. Pois, a menos que se trate de uma fotografia com finalidade catalográfica, com a única finalidade de registrar um aspecto da natureza para os anais da biologia ou das ciências naturais (e mesmo assim, não estão excluídas as preocupações estéticas), os elementos como formas geométricas, cores, luz, etc., são cruciais para motivar a foto. Ainda assim, é importante citá-la aqui como um tipo de fotografia que por si só motiva interesse. A macrofotografia é particularmente relevante para esta categoria, visto que possibilita a exibição de imagens, formas e cores nem sempre visíveis a olho nu.

Imagem 6.1 (cores fortes sobre fundo monocromático)

Profundidade de campo

Embora fosse mais certo falar de profundidade de campo como um recurso (ou uma limitação) do que como uma motivação em si, ela merece uma atenção especial para o propósito desta reflexão, pois em alguns casos uma cena pode gerar interesse somente quando levada em consideração a profundidade de campo da imagem final. Cabe lembrar que a profundidade de campo é fruto de uma limitação de equipamento que ganhou uma conotação estética. Nosso olho também tem uma profundidade de campo limitada, embora seja muito superior à da câmera, por mais avançada que esta seja. Esta limitação, contudo, passou a ser aproveitada (ou treinamos nosso gosto para apreciá-la) para gerar o interesse por uma cena. Em geral, seu resultado mais imediato é conduzir a atenção de quem observa a foto para algum tema de nosso interesse.

Imagem 7.1 (a mesma foto feita com aberturas diferentes para variar a profundidade de campo)

Conclusão
Certamente, os elementos relacionados acima não são exaustivos e reitero que se trata apenas de uma reflexão sobre as razões que costumam me levar a desejar fotografar uma cena. Além disso, não é demais insistir que todos esses elementos costumam interagir e dificilmente aparecem de forma isolada em uma boa foto (se é que existe algo assim). Uma cena que reflita uma situação de cunho social, por exemplo, pode não ser suficiente para gerar interesse. Este é um de meus temas preferidos de foto, no entanto, considero que é também um dos que mais tenho dificuldade de captar. Com muita frequência acabo por jogar fora (na lixeira do computador) as imagens. Na maioria dos casos em que não fico satisfeito com o resultado (que por sua vez também constituem a maioria dos casos), o afã de abarcar uma cena com múltiplos elementos e em contradição resultam em uma imagem confusa. É fundamental, portanto, estabelecer uma hierarquia entre os elementos para conseguir realizar a foto. Mesmo que o assunto seja a cena em geral ou o cenário urbano, confuso e caótico por natureza, é preciso saber como transmitir essa sensação de caos, tentar identificar um assunto prioritário, fazer com que os demais elementos se relacionem com ele, usar as regras de composição e o senso estético para alcançar o objetivo. Talvez justamente por propor o caos como tema em um suporte limitado e que requer certa ordem cartesiana, este tipo de foto ofereça tanta dificuldade. De qualquer maneira, este texto é uma tentativa de refletir sobre esses aspectos, uma tentativa que não se pretende exaustiva nem completa, somente um novo alento para motivar a continuidade dessa busca fadada ao insucesso por um idílio de foto perfeita.

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