terça-feira, 29 de abril de 2014

“Ah, passado, passado, por que me persegues assim? Porque não posso andar na frente.”



“As fotos congelam o tempo” é uma frase bastante comum, quase um clichê, que ouvimos e repetimos frequentemente. Mas os clichês costumam ter dois efeitos: a sua aceitação ou rejeição imediata. Em ambos os casos, porém, escapam à reflexão, são relegados ao campo morto das verdades irrefutáveis ou das coisas sem importância (sinônimos quiçá?). Às vezes, como eu mesmo não sou mais que um clichê, uma repetição gasta de inúmeros outros seres que passaram por este mundo, desconfiados e ruminantes entre a esperança e a desesperança, calvos e risonhos por vezes, embora com um riso triste se olhado de perto, frequentemente sou tomado por um desejo de analisar os clichês. Talvez seja esta uma das principais funções ou atribuições ou, ainda, sinas de um estulto. Pois bem, voltemos às fotos. Elas congelam o tempo. A rigor não o congelam, pois o tempo passa a despeito de toda imobilidade da imagem que aprisionam. E se formos capazes de tirar o olho do conteúdo estático da foto e olharmos para ela enquanto objeto ou suporte, veremos que nada tem o tempo de congelado. Lembro-me de minha foto sépia, verdadeiramente sépia e não por obra de um tosco efeito de computador, que na parede do quarto que eu ocupava na casa dos meus pais mostra a criança de quatro anos, com um uniforme amarelo (imagino-o amarelo, pois a foto era em preto e branco), com a língua para a fora no canto da boca devido à timidez. Sei que a criança sou eu, e a foto já está praticamente toda apagada. Com quatro anos permaneci lá todos estes anos, mas hoje é quase apenas uma moldura de madeira e uma placa de compensado apagada. Rapidamente os mais neófilos responderão que hoje as fotos digitais têm maior esperança de vida ou que em condições de preservação museológicas, ela poderia ter tido mais sorte. Sim, verdade. Dou-lhes isto. Mas ainda assim, as fotos digitais do meu HD dependem da vida útil do dispositivo, dos dispositivos de cópia de segurança, da minha capacidade de reproduzi-las e, em última instância, da garantia de existência de todos os recursos que permitem a sua preservação, quer seja a minha capacidade de sustentar esta estrutura ao longo dos anos ou a capacidade da humanidade de sustentar estes recursos ao longo dos anos. Em última instância, os computadores, a eletricidade, as molduras de madeira e até os museus deixarão de existir e tempo reinará soberano sobre a memória das fotos que um dia ousaram desafiá-lo segundo as más línguas atreitas a clichês.

Mas não é preciso que cheguemos a extremos, não sejamos tão catastróficos, as fotos congelam o tempo enquanto vivemos, enquanto duram os suportes, enquanto dura a nossa memória. Enquanto dura a nossa memória? Sim, pois sem ela aquela foto em meu antigo quarto, mesmo apagada, não seria a mesma e talvez nem seja a mesma, os meus olhos mudaram, não os da foto, mas o que a olham. A olham mais baços, tão baços quanto a foto. E o que dizer da foto que encontrei na rua certa vez da moça sorridente. Ela está lá, “eterna” segundo dizem, com seu sorriso no asfalto. Não sei quem é, não sei como foi parar lá. Mas está. Congelada em um tempo de não existência, ela jamais existiu para além da imagem e jamais existirá, a menos que eu venha a conhecê-la. E ainda assim não será mais aquela.


O tempo destrói então o suporte da foto, o tempo corrói a minha memória (sei que ele também constrói, ele também sana, mas como clichê do pessimismo que sou, falo apenas da destruição, da corrosão) e quando olho as fotos nos meus arquivos, não vejo o tempo congelado, vejo as minhas memórias, o momento exato em que tirei cada uma delas, vejo o que o tempo fez com seu inclemente cinzel, como tolheu o que outrora me dera, como me dá o que outrora prometera, como nem dá nem toma, é e passa. Vejo em cada uma das fotos as curvas e linhas, as cores e manchas, as expressões e o movimento, tudo congelado, mas sinto vivo cada um dos momentos em que apertei o disparador da câmera, cada sensação, o vento que me soprava o rosto, o cheiro da dama da noite, o som dos carros apressados que não compreendiam o que eu fazia em uma ponte tão suja, os passos dos pedestres assustados, a minha própria razão de ser sem razão, do clichê sem razão. E o tempo? Nada... Arrogante e indiferente a todo pulsar, pulsar-clichê, do meu desejo de deter o seu ímpeto, de tomar-lhe o cinzel, de ser seu dono, de congelar o seu ser...

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