domingo, 24 de abril de 2011

Eufemismos

São muito interessantes os eufemismos da vida cotidiana.
Hoje em dia:
1 – Carro velho é chamado raridade.
2 – Cabeleireiro é chamado hair designer
3 – No ioga, esteira virou mat (mas precisamente méti)
4 – Orçamento é budget
5 – Atuação em vídeo é acting
6 – Pentelhação e covardia é bulling

E assim vai, como a vida quase não muda, na sociedade das mudanças, sente-se a necessidade de mudar as palavras, para parecer que envelhecemos diferentemente a nossos pais, que os trinta são os novos vinte, e assim vai...

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Arte e resistência?

“Qual a relação entre a obra de arte e a comunicação?

Nenhuma. A obra de arte não é um instrumento de comunicação. A obra de arte não tem nada a ver com a comunicação. A obra de arte não contém, estritamente, a mínima informação. Em compensação, existe uma afinidade fundamental entre a obra de arte e o ato de resistência. Isto sim. Ela tem algo a ver com a informação e a comunicação a título de ato de resistência." - Deleuze 1


Comentários

Tanto a pergunta como a resposta acima partem de um pressuposto incorreto, pois consideram que existe algo chamado obra de arte, enquanto um ente atemporal. A obra de arte não é algo que se pode anacronicamente analisar como uma forma de manifestação ou resistência pertinente em qualquer época e lugar. Embora muitos defendam que a obra de arte surge de uma espécie de poço comum onde os espíritos mais sensíveis saciam sua sede, parece-me que a arte em si surge de movimentos culturais e historicamente bem definidos com relações difusas nos capilares de uma sociedade, relacionando-se com a comunicação, com a política, com a filosofia, etc. Da mesma forma que não se pode definir a obra de arte como um ente imutável, também é um equívoco pensá-la como um correlato estrito de uma forma de resistência. A obra de arte pode e é em muitos momentos ortodoxa, retrógrada e conservadora.
Para sair da esfera especulativa apenas, pensemos no caso dos quadros de Van Gogh. É corrente no senso comum que este pintor teria passado sua vida entre a loucura e o anonimato e suas obras teriam sido "descobertas" postumamente e revelado um valor inestimável que poderia ter se perdido na imensidão de pinturas ignotas. É sabido que a história dos quadros de Van Gogh não tem contornos tão românticos, ao que parece seu tio era mercador de arte, atividade bastante comum em sua família, e os idílicos termos “descoberta” ou “revelação” deveriam dar lugar a outro mais mercadológico como "lançamento". Não se trata aqui de discutir os méritos ou a qualidade dos quadros de Van Gogh. Mas é bastante eloquente o caráter de revelação que é atribuído ao reconhecimento do valor de suas obras. Tal atribuição faz parte justamente desta interpretação da arte como algo com valor intrínseco em si e por si. Os quadros de Van Gogh encerrariam, segundo dito ponto de vista, um valor intrínseco "a ser descoberto" mais cedo ou mais tarde pela humanidade ou pelo menos por esses espíritos mais sensíveis capazes de sorver o maná que suavemente emana da perene fonte universal da arte. E se Van Gogh não tivesse sido “descoberto”, a arte ainda seria a mesma? Certamente não, mas não estaria mutilada pela falha histórica de homens brutos incapazes de ver a beleza em seus quadros. Seria arte ainda, é estéril especular sobre o que seria, mas é útil compreender que o gosto, que a fruição estética é historicamente construída, bem como a noção de obra de arte.
Pois bem, uma vez refutado o conceito de arte enquanto um ente anistórico, que poderia dar lugar ao termo Obra de arte, pensemos agora sobre sua associação à resistência. Como se argumentou acima, a arte é histórica e faz parte de uma complexa teia cultural. Nesse sentido, hoje é inevitável ponderar sobre a arte em termos de hegemonia. Antes de explanar esta asserção, vale citar um exemplo concreto. Em O arco-íris do desejo, Boal conta uma experiência que teve ao apresentar um espetáculo político para a Liga Camponesa, experiência esta muito semelhante a outras com as quais tive contato, mas atenhamo-nos, em prol do argumento, a este caso. Conta Boal:

    Até que um dia – e há sempre um dia em toda história – um belo dia estávamos representando um desses belos musicais em um vilarejo do Nordeste, numa Liga Camponesa. Plateia emocionada, só de camponeses. Texto heróico, “Derramaremos nosso sangue!” No fim do espetáculo aproximou-se de nós um camponês alto, enorme, forte, um homem emocionado, quase chorando:
    _ “É uma beleza ver vocês, gente moça da cidade, que pensa igualzinho que nem a gente. A gente também acha isso, que tem que dar o sangue pela terra.”
    Ficamos orgulhosos. Missão cumprida. Nossa “mensagem” tinha passado! Mas Virgílio – nunca mais esquecerei nem seu nome nem seu rosto, nem sua lágrima silenciosa – Virgílio continuou:
    _ “E já que vocês pensam igualzinho que nem a gente, vamos fazer assim: primeiro a gente almoça (era meio-dia), depois vamos todos juntos, vocês com esses fuzis de vocês e nós com os nossos, vamos desalojar os jagunços do coronel que invadiram a roça de um companheiro nosso, puseram fogo na casa e ameaçaram matar a família inteira! Mas primeiro vamos comer."
    Perdemos o apetite.
    Tentando organizar os pensamentos e as meias frases, fizemos o possível para explicar o mal-entendido. O argumento que nos pareceu mais verdadeiro foi dizer a verdade: nossos fuzis eram objetos de cenografia e não armas de guerra.
    _"Fuzil que não dá tiro???” – perguntou espantadíssimo. “Então para que serve?”
    ...
    _ “Então aquele sangue que vocês acham que a gente deve derramar é o nosso, não é o de vocês...?”
    _ “Porque nós somos verdadeiros sim, mas somos verdadeiros artistas e não verdadeiros camponeses... Virgílio, volta aqui, vamos continuar conversando... Volta..." 2

O livro é muito rico em relatos como esse e recomendo sua leitura, mas o que nos interessa aqui é perceber que o artista não é um ser que paira na sociedade sem interesses, desejos e medos próprios. O artista pertence a uma classe específica, tem uma carga cultural específica, um gosto (enquanto constructo estético) peculiar e é com eles que fará suas obras de arte. Pensando nos dias de hoje, é bastante comum a existência de iniciativas que procuram transformar em arte impulsos revolucionários e de resistência. Considerando ainda o caso relatado por Boal, imaginemos que em vez de ir embora Virgílio tivesse ficado e aceitado conversar. Imaginemos que tivesse sido convencido a juntar-se à trupe e manifestar sua revolta por meio da arte. Que fizessem um protesto pacífico, artístico, quem sabe ficassem nus e com os corpos pintados, todos em silêncio diante dos jagunços atônitos. Teríamos certamente precursores do que se conhece hoje como "inclusão social" (sic). É inegável que muitas vezes tais movimentos trazem melhorias pontuais e específicas, de quando em quando vemos um "gênio" resgatado da marginalidade tornando-se matéria do Fantástico e razão de orgulho da nação. Mas não seria viável pensar nesse movimento de inclusão como uma forma de domesticação de um impulso revolucionário e ameaçador? Os artistas, “a classe artística”, pertencem a um sistema e ocupam um espaço importante na sociedade da mão-de-obra excedente. A criação da noção de artista profissional é parte desse processo histórico de conversão em mercadoria de toda e qualquer relação social. E ainda assim, deveríamos pensar em arte como uma forma de resistência? A arte tem tudo a ver com a comunicação. Não é uma forma de comunicação nem se limita a ela, é antes derivada de sua deficiência. A experiência individual, vida e morte (para citar extremos apenas) superam e sobrepujam a comunicação em anos luz e dessa sempiterna lacuna surge o impulso artístico, a vontade de criação, que por sua vez nada tem a ver com resistência.

Qual a relação entre a obra de arte e o ato de resistência?

Nenhuma. Esta resposta, provocativa e alusiva ao trecho de Deleuze, consubstanciada acima, visa evitar uma supervalorização da arte como caminho de libertação e resistência, muitas vezes apontado como o único possível...
...mas isso não quer dizer que se deva descartar a relação proposta por Deleuze. Parece-me que este se refere ao foro mais íntimo de resistência, aquele em que o indivíduo se vê obrigado a lidar com as pressões e as personas que se impõem na vida em sociedade, com as pequenas opressões do cotidiano, da pedestre faixa; a arte “mescalina o homosexualidad o luna de Valencia, arte nostalgia, complexo da Arcadia, etc.”3. Nesse sentido, a resistência só pode existir enquanto ato, somente se plasma na criação e no usufruto individual que independem parcialmente do ciclo manifestação-expressão-compreensão da comunicação; parcialmente, pois na formação da estética-história estes processos intervêm constantemente. Uma resistência no âmbito micropolítico? Talvez. E por ser pertinente a este âmbito, deveríamos descartar sua influência no âmbito macropolítico? Seria ingênuo procurar separar artificialmente as duas esferas, posto que nenhum processo de dominação pode existir sem a interiorização dos valores hegemônicos nas relações sociais mais básicas. A arte, neste contexto, é uma das formas de interiorização da opressão e também de resistência a ela, todos os governos autoritários compreenderam bem isso, buscando controlá-la quer seja por meio da censura explícita, como nas ditaduras latino-americanas, pela produção intensa como no caso do nazismo, ou pela tirania do mercado e do gosto da maioria, como nas democracias ocidentais. Assim, o que se pretendeu aqui, foi desconstruir uma noção pueril de arte como ente anistórico e detentor de por si de um potencial transformador e repor em jogo as forças e interesses que se debatem em sua violenta arena. A arte é, enfim, um campo de lutas constantes, em que se manifestam forças ortodoxas, heterodoxas, interesses distintos, e não um instrumento sacro ou meio inócuo onde a esquerda pode depositar suas esperanças sempre que se esgotam as convicções políticas.


1 - Trecho extraído de http://revolucoes.org.br/v1/blog/revolucoes/gilles-deleuze-o-ato-de-criacao-trecho
2 - BOAL, Augusto. O arco-íris do desejo. O Método Boal de teatro e terapia - Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. Pg. 18
3 - CORTÁZAR, Julio. Rayuela, capítulo 71.