Mickey & Co., que mal tem?
Há algum tempo sinto um incômodo com um fenômeno contemporâneo cuja causa não conseguia distinguir precisamente. À primeira vista, o atribuía a minha rabugice e ao inegável fato de que estou envelhecendo e, com isso, abandonando a geração que comanda o mundo e os gostos hoje em dia, para não dizer (já dizendo), a geração que dita as tendências de consumo. Não descarto que haja algo disso nesse incômodo, mas decidi investigar um pouco mais a fundo, visto que essa mesma sensação me acompanha há anos quando ainda posso dizer que pertencia à geração relevante para o mercado. Deixando de lado a autoanálise, passo agora a falar do fenômeno em si, o objeto do meu incômodo.
Aceitemos por um minuto que esta hipótese que levanto de forma empírica, sem nenhum embasamento estatístico real, a não ser o que os meus ouvidos cada vez mais surdos às necedades cotidianas, me permitem depurar, esteja de fato correta. A pergunta seguinte seria: há algo de errado nisso? Tem motivo para me causar qualquer incômodo? É isso que desejo escrutinar para determinar se é apenas a minha rabugice atingindo novos patamares ou se algo nesse fenômeno merece desconfiança como toda grande hegemonia que se impõe.
A primeira pergunta que me vem à mente refere-se ao conteúdo desses produtos (propositalmente escolho esta palavra no lugar de obra, pelo que se expõe a seguir). O conteúdo, inicialmente concebido para o público infantil, utiliza modelos de compreensão e interpretação de mundo bastante simplificados. Em geral, resumem os conflitos a uma dualidade entre bem e mal e têm uma finalidade moralista, que visa a integração da criança a um regime social. São modelos que propõem uma verdade moral fundada na tradição e não fomentam a reflexão além de determinadas fronteiras. Quando adultos, trabalhadores cansados de um dia a dia exaustivo, recorrem a este conteúdo como forma de lazer, estão relaxando todos os poros do seu corpo, especialmente o senso crítico. Não desejam qualquer reflexão, apenas a corroboração dos modelos vigentes.
Outro agravante da elaboração desses produtos é que se fundamentam em fórmulas cujo resultado deve ser o sucesso, tomado aqui como venda ao maior número de consumidores. Para tanto, os grandes estúdios possuem fórmulas que devem reciclar constantemente e jamais arriscam demasiado. São fórmulas que novamente recorrem a modelos simplistas e tradições para não incorrer no risco de desagradar os seus consumidores. Isso é o oposto da minha concepção, novamente rabugenta e ranzinza, de obra artística que a vê como aquela que não deve agradar ou ao menos não deve ter no gosto alheio seu juiz definitivo. São fórmulas comprovadas, funcionam, é quase impossível terminar de assistir a algum desses produtos sem aquele sorriso anestesiado nos lábios e a vontade de continuar consumindo. Nada a objetar em relação à qualidade técnica atingida por essas fórmulas.
A pergunta seguinte é, portanto: se agradam a maioria e funcionam tecnicamente, há algum mal nisso? Claro que a resposta dependerá do grau de conformismo ou cinismo de cada um. No meu entender, trata-se de um processo contínuo de doutrinação e redoutrinação moral, que favorece a manutenção do status quo, a ratificação de valores hegemônicos e o consumo desenfreado. Mas, mais grave ainda, o resultado dessa doutrinação é uma geração de adultos infantilizados que ancoram a sua visão de mundo nesses modelos narrativos simplificados marcados pela dualidade entre o bem e o mal. Não surpreende ver nos dias de hoje todo o debate político, quer sejam posturas de esquerda ou direita, fundar-se nessa dualidade. Na direita, é fácil vê-la em lemas como “ame ou deixe”, “ame o seu país”, “amor à pátria”, “restabelecimento da ordem”, etc. Na esquerda, ideais como “bem comum” (separados do seu conteúdo político e caráter necessariamente conflituoso), “intelectual” e de “arte salvadora” (única capaz de salvar a humanidade), entre outros, também encarnam a figura do bem.
É preciso aceitar a reintrodução da política nas relações sociais, não como um herói salvador, muito menos como o meio para o triunfo de um valor inquestionável, mas como esse campo minado e inerentemente conflituoso em que atores com interesses distintos e visões de mundo diferentes devem dialogar ou se matar. E esse é um cenário que não cabe nos roteiros de Disney, da Pixar, da Marvel, etc. Mas esse é também um cenário que, apesar de parecer ter menos sangue aparente, balas, perseguições de carro e bombas arrasadoras, promove um desassossego aterrorizante entre adultos que preferem se refugiar no regaço confortante de Mickey e companhia.