domingo, 16 de junho de 2019

Mickey & Co., que mal tem?

Há algum tempo sinto um incômodo com um fenômeno contemporâneo cuja causa não conseguia distinguir precisamente. À primeira vista, o atribuía a minha rabugice e ao inegável fato de que estou envelhecendo e, com isso, abandonando a geração que comanda o mundo e os gostos hoje em dia, para não dizer (já dizendo), a geração que dita as tendências de consumo. Não descarto que haja algo disso nesse incômodo, mas decidi investigar um pouco mais a fundo, visto que essa mesma sensação me acompanha há anos quando ainda posso dizer que pertencia à geração relevante para o mercado. Deixando de lado a autoanálise, passo agora a falar do fenômeno em si, o objeto do meu incômodo.

Observo hoje em dia, mais que em outros tempos que a minha falível memória me permite recordar, que cada vez mais adultos encontram nas produções de Disney e filmes e séries de super-heróis a sua principal fonte de entretenimento. Não digo que nos anos 80 o lançamento do Superman não tenha sido recebido com enorme entusiasmo pelo público em geral e que os carismáticos personagens de Disney não gozassem de certa reputação entre adultos, mas não eram a fonte exclusiva de entretenimento e os pais se refugiavam nos filhos como álibi para visitar os parques de Orlando. Hoje, parece, ao menos aos meus ouvidos ranzinzas, que heróis e Disney são tudo o que existe e os adultos já não precisam de desculpas para programar viagens sem crianças aos cada vez mais alucinantes parques temáticos na Flórida.

Aceitemos por um minuto que esta hipótese que levanto de forma empírica, sem nenhum embasamento estatístico real, a não ser o que os meus ouvidos cada vez mais surdos às necedades cotidianas, me permitem depurar, esteja de fato correta. A pergunta seguinte seria: há algo de errado nisso? Tem motivo para me causar qualquer incômodo? É isso que desejo escrutinar para determinar se é apenas a minha rabugice atingindo novos patamares ou se algo nesse fenômeno merece desconfiança como toda grande hegemonia que se impõe.

A primeira pergunta que me vem à mente refere-se ao conteúdo desses produtos (propositalmente escolho esta palavra no lugar de obra, pelo que se expõe a seguir). O conteúdo, inicialmente concebido para o público infantil, utiliza modelos de compreensão e interpretação de mundo bastante simplificados. Em geral, resumem os conflitos a uma dualidade entre bem e mal e têm uma finalidade moralista, que visa a integração da criança a um regime social. São modelos que propõem uma verdade moral fundada na tradição e não fomentam a reflexão além de determinadas fronteiras. Quando adultos, trabalhadores cansados de um dia a dia exaustivo, recorrem a este conteúdo como forma de lazer, estão relaxando todos os poros do seu corpo, especialmente o senso crítico. Não desejam qualquer reflexão, apenas a corroboração dos modelos vigentes.

Outro agravante da elaboração desses produtos é que se fundamentam em fórmulas cujo resultado deve ser o sucesso, tomado aqui como venda ao maior número de consumidores. Para tanto, os grandes estúdios possuem fórmulas que devem reciclar constantemente e jamais arriscam demasiado. São fórmulas que novamente recorrem a modelos simplistas e tradições para não incorrer no risco de desagradar os seus consumidores. Isso é o oposto da minha concepção, novamente rabugenta e ranzinza, de obra artística que a vê como aquela que não deve agradar ou ao menos não deve ter no gosto alheio seu juiz definitivo. São fórmulas comprovadas, funcionam, é quase impossível terminar de assistir a algum desses produtos sem aquele sorriso anestesiado nos lábios e a vontade de continuar consumindo. Nada a objetar em relação à qualidade técnica atingida por essas fórmulas.

A pergunta seguinte é, portanto: se agradam a maioria e funcionam tecnicamente, há algum mal nisso? Claro que a resposta dependerá do grau de conformismo ou cinismo de cada um. No meu entender, trata-se de um processo contínuo de doutrinação e redoutrinação moral, que favorece a manutenção do status quo, a ratificação de valores hegemônicos e o consumo desenfreado. Mas, mais grave ainda, o resultado dessa doutrinação é uma geração de adultos infantilizados que ancoram a sua visão de mundo nesses modelos narrativos simplificados marcados pela dualidade entre o bem e o mal. Não surpreende ver nos dias de hoje todo o debate político, quer sejam posturas de esquerda ou direita, fundar-se nessa dualidade. Na direita, é fácil vê-la em lemas como “ame ou deixe”, “ame o seu país”, “amor à pátria”, “restabelecimento da ordem”, etc. Na esquerda, ideais como “bem comum” (separados do seu conteúdo político e caráter necessariamente conflituoso), “intelectual” e de “arte salvadora” (única capaz de salvar a humanidade), entre outros, também encarnam a figura do bem.

É preciso aceitar a reintrodução da política nas relações sociais, não como um herói salvador, muito menos como o meio para o triunfo de um valor inquestionável, mas como esse campo minado e inerentemente conflituoso em que atores com interesses distintos e visões de mundo diferentes devem dialogar ou se matar. E esse é um cenário que não cabe nos roteiros de Disney, da Pixar, da Marvel, etc. Mas esse é também um cenário que, apesar de parecer ter menos sangue aparente, balas, perseguições de carro e bombas arrasadoras, promove um desassossego aterrorizante entre adultos que preferem se refugiar no regaço confortante de Mickey e companhia.

sábado, 1 de julho de 2017

O fardo do naturalismo

Assisti recentemente a uma oficina de dramaturgia com X. Após as tradicionais apresentações de cada participante, o palestrante deu início a sua aula. Começa, “como não poderia ser diferente", dizendo que uma peça de teatro deve ter conflito, que sem este não há drama, ação. Ok. Diz que ouve sempre as pessoas dizerem que devemos escrever somente sobre o que conhecemos, mas que ele discorda, pois nesse caso todas as peças teriam um só personagem, o próprio autor. Logo diz que os personagens da peça devem ter lacunas, isto é, uma incompletude que os impede de ser perfeitos. Para tanto, começa a mostrar suas próprias manias pessoais, é hipocondríaco e obsessivo compulsivo. Mostra uma série de objetos que ilustram o relato: remédio para diarréia, embora não sofra de diarréia, remédio para ingestão, chiclete, etc. Na sequência, pede a todos que pensem em defeitos pessoais que levados a extremos (ou não) pudessem tornar-se obstáculos para o nosso desenvolvimento. Solicita que alguns voluntários comentem seus próprios defeitos e mostra como isso pode tornar-se um conflito. Continuando o exercício, indica a todos que pensem uma situação real dramática ou cômica em que essa característica tenha interferido. Divide o grupo em trios: A, B e C. Logo, A deve contar sua história e B deve ouvir e transformá-la em prosa. B, por sua vez, conta seu relato para que C faça as notas e, por último, C conte para A. Finalmente, pede que cada um devolva ao dono de cada história o relato escrito. Isto é, C entrega o que escreveu para B, B para A e A para C. Assim, cada um deveria transformar em diálogos e ações o relato em prosa feito pelo companheiro. Ao comentar os exercícios um dos participantes diz: "Eu achei que minha história voltou para mim com a subjetividade de B e não com a objetividade que contei". Por último, o palestrante explica que em geral as peças ruins ou escritas por autores inexperientes costumam dar informações demais na ânsia de passar tudo ao espectador e que uma forma eficiente de saber se uma peça é ou não boa é pegar o texto, virá-lo de ponta cabeça e ver se os diálogos fazem uma espécie de ziguezague, pois textos com falas muito longas não mantêm a atenção das pessoas, afinal nós mesmos no dia a dia nem completamos as frases, falamos de formas diferentes dependendo do contexto, etc. Creio que este curto resumo das seis horas de oficina é suficiente para entrar a analisar as entrelinhas do enunciado. Entrelinhas estas bastante explícitas no que diz respeito ao triunfo do naturalismo e da noção de objetividade dentre todos os estilos possíveis. Evidentemente, um autor é livre para utilizar a linguagem que quiser, com o nível de formalidade que julgar pertinente e deve pensar exclusivamente em ser fiel a sua intuição criativa ao escrever, quer sejam frases longas, curtas, rebuscadas, coloquiais, etc. Quem deve se ocupar de tornar aquele texto crível é o diretor e o ator. Não é raro encontrar clássicos "revitalizados" com uma linguagem mais contemporânea: "E aí, beleza, Hamlet?". Tudo isso no intuito de tornar um texto como esses "palatável" ao público. Aliás, essa é a premissa fundamental para o palestrante. Alega ele que o autor deve pensar no público ao escrever, pois se o público deixou de ir ao cinema ou assistir à TV para ir ao teatro, devemos agradecê-lo, oferecendo-lhes entretenimento. Claro está que ninguém pretende que alguém vá ao teatro para aborrecer-se, mas aparentemente a ideia do palestrante é que ofereçamos ao espectador TV e cinema já que ele não viu TV e cinema. No cinema, o estilo predominante é o naturalismo, a ponto de a ficção incorporar cada vez mais em sua gramática própria as técnicas do documental para transmitir uma maior sensação de realidade, enfatizando a ilusão de mímese do real. O teatro, contudo, não pode, nem deve querer, competir com o cinema cuja técnica permite visualizar uma decapitação com tamanho ilusionismo que a cena poderia ser tomada por verdadeira. O último filme de Zé do Caixão abandonou a essência de toda sua filmografia e utilizou cenas reais de suspensão de humanos, por exemplo, para uma maior sensação de realidade. No teatro, se houver uma decapitação, é recomendável que não haja sangue algum e se houver que seja explicitamente catch-up! O teatro só pode sobreviver em sua precariedade, em sua especificidade. O naturalismo é um estilo possível, mas não deve ser confundido com dramaturgia. Escrever teatro requer conhecer teatro, saber que se trata de um jogo que exige somente a cumplicidade do público. Que este se divirta não é necessariamente excludente com formas de estímulo próprias do teatro. Além do coloquialismo mencionado acima é comum também ver no palco cenas encobertas de fumaça de um cigarro na mesma peça em que atores fazem mímica na hora de uma refeição. Este é outro erro bastante comum, misturar estilos e perder-se no meio do caminho. O teatro, mais que no cinema e muito mais que na TV, é o locus próprio da imaginação, do implícito, é o paralelo visual do livro, pois requer que o espectador (leitor) complemente a narratividade com suas próprias imagens. Bastante já dissemos sobre o triunfo do naturalismo. O mesmo se pode dizer sobre a objetividade. A referida incorporação de técnicas documentais nos filmes de ficção são eloquentes nesse sentido. O comentário do participante também foi sintomático nesse sentido. “Eu narrei objetivamente e ele escreveu subjetivamente”. Não percebe que sua narração, como toda narração está carregada de subjetividade. O que ele é capaz de reconhecer como subjetividade, no entanto, é somente o relato do outro. A subjetividade não é um mal a ser evitado, é o bem mais precioso a ser explorado, é o que torna singular a história. Curiosamente, o ícone máximo dos artistas mais progressistas, a saber, Brecht, é um dos grandes impulsores da noção de objetividade na arte. Sua perspectiva de um teatro pautado pelo distanciamento do ator em relação ao narrado é um legado do positivismo científico, do estabelecimento dos paradigmas fundadores das ciências humanas. E é mais curioso ainda que hoje essa perspectiva seja prontamente adotada no mundo das artes, quando na própria ciência já está bastante minada por inúmeros questionamentos. É normal, no entanto, essa defasagem, dada a fluência ou o trânsito de formas de enunciação entre os diferentes discursos e saberes. Para concluir este sucinto artigo, penso ser importante ressaltar novamente a liberdade do dramaturgo para escrever sem outra preocupação que visualizar o drama ou a ação. Da mesma forma, este saberá respeitar a liberdade do diretor na montagem, do ator na interpretação e do público na leitura. Afinal, é vão pretender controlar no processo artístico toda a cadeia de difusão ou a ressonância de uma obra. Como diz Barthes, o sentido só se restitui no receptor. Supor que conhecemos o que o público deseja ver, o que o mercado deseja comprar, e guiar-se por esse conhecimento é pretensioso e absolutamente detrimentoso para a arte. “Damos a eles o que querem ver”, supõe-se. Isso, contudo, é uma homogeneização do público, é subestimar a capacidade do público e realimentar um ciclo de produção de um gosto consensual fortemente influenciado pela TV. É a velha desculpa do mercado! Não se experimenta o novo para dar ao público o que este deseja. Este, porém, não pode conhecer o novo, pois sempre se lhe oferece o mesmo. O gosto é construído historicamente e não um dado inato, e o artista deve entender como ele mesmo se relaciona com esse processo histórico. É, neste sentido, portanto, que o teatro não pode esquecer-se de sua especificidade, sua natureza enquanto invenção que se dá somente hic et nunc, no contato com o público, o qual é muito mais aberto a experimentar do que os produtores de massa desejam ver.

A peça do ano

Sinopse:
A peça do ano começa com o ano em pedaços, cada peça pesa sobre a outra como se o ano fosse um fardo arrastado e infinito. É nesse cenário que personagens sem nome circulam tenteando seu limitado universo a cada passo e confrontando suas verdades. No fim, o culpado é o mordomo. Alguém tem fogo? Não? Não tem problema, não fumo. Faz mal à saúde. Enfim, se fim há de ter, ter-se-á de contentar-se com o fogo sem sim.

Fala do primeiro personagem:

Personagem sem nome 1:
Camelos do mundo, uni-vos!
Não sabeis que em vossas corcovas
tendes a água que sacia vosso espírito!!
Vagai pelo inóspito deserto
(onipresente deita-se à frente!)
vagai, não temei!!


Final possível:
FIM

sexta-feira, 3 de julho de 2015

Vento de inverno

Já estava por terminar seu habitual banho noturno quando se permitiu três minutos de água quente batendo-lhe nas costas, três minutos estes que em muito ultrapassavam sua tolerância a desperdícios desnecessários, afinal, a conta de luz, a crise energética do planeta, os recursos hídricos cada vez mais ameaçados... Ainda assim, Francisco julgou que se justificava aquele luxo com a contratura no trapézio que mal o deixaria dormir e deixou-se quedo sob a água morna abandonado a alguns pensamentos desordenados. Interrompeu a massagem, no entanto, um calafrio inesperado, provocado por um sopro que a princípio atribuiu aos esporádicos ventos cuspidos entre sol e sol pelo tímido inverno daquelas zonas tropicais. Mas logo soube que a apoucada fresta da janela muito deveria esforçar-se para engolfar o ar quieto da rua e que o sopro não era qualquer fenômeno eólico, mas sim sua outra vida possível insinuando-se por entre a cortina de água que o rodeava e tocando-lhe a pele úmida até eriçar-lhe cada um de seus poros.

 Reconheceu todos os longos anos que não vivera, cada uma de suas alegrias possíveis, sorrisos alheios a seu cotidiano, mas que ainda podia recordar. Não foi capaz de descrever com precisão nada do que sentira, eram amores, outras cores, outro penteado, outra cidade e seus vícios, amores? Outra vida possível, com certeza. Saiu do banho, resoluto, envolto na toalha e na esperança de mudar. Mudaria, de cidade, de vida, de trabalho, de hobbies, de si. Não havia mais dúvida de que largaria tudo, lembrou-se de Fabio. Aos 35, abandonara o banco, uma carreira estável, uma casa confortável, alimentos orgânicos assepticamente embalados, e foi ao interior estudar botânica. A família não aceitou a decisão e o esqueceu, aos poucos já não era mais que ausência proibida. Escreviam-se ainda, embora muito pouco se pudessem contar, quase sempre algumas opiniões sobre plantas e flores, única paixão em comum. Largaria tudo ele também.

Meticuloso como sempre, Francisco terminou de vestir-se e antes de deitar-se apanhou uma caderneta para começar a planejar como largaria tudo, afinal, largar tudo não poderia ser um simples rompante insone e exigia um exaustivo planejamento. Decidiu pôr em ordem, portanto, cada uma das coisas que deveria abandonar. Devia avisar na repartição, afinal Miranda ficaria algo sobrecarregado com sua ausência, começaria por notar que a pilha de planilhas em sua mesa aumentava inexplicavelmente. Cruzava-se com Miranda duas vezes ao dia, quando este chegava às 9 e se retirava á 17 pontualmente. Tinha dúvidas se saberia seu nome. Certa vez lembrava-se de tê-lo ouvido dizer seu sobrenome, mas não seu nome. O único indício de sua ausência seria, portanto, o acúmulo de planilhas sobre a mesa de Miranda, que este tardaria em compreender, mas logo ligaria ao departamento de RH para solicitar um novo concurso, pois aparentemente o quadro atual não dava conta do trabalho.

Também seria necessário desligar-se da academia. Todos os dias, pontualmente às seis da manhã terminava de soltar a musculatura dos bíceps e mergulhava na água ainda adormecida da piscina tratada com ozônio. Preguiçosas, as águas se abriam e tumultuavam-se ao seu redor. Pouco depois, chegava Cristina, senhora com quem mantinha uma secreta disputa por melhores índices de assiduidade. Em três anos de natação, nem sequer o professor apresentara-se mais vezes que os dois dedicados alunos, a quem nem ferrenhas febres eram capazes de afastar. Secretamente cada um deles esperava que o outro faltasse, para dar-se por vitorioso e permitir-se hábitos mais lassos. Nenhum, no entanto, cederia tão facilmente. Podia imaginar o júbilo de Cristina quando enfim encontrasse a tíbia água ainda quieta a esperá-la e a desbravasse por dois mil solitários metros sem seu secreto rival. Teve que reconhecer que seria duro abandonar assim a disputa.

À academia, seguia na lista, o apartamento. Comprado havia 5 anos, ainda não estava completamente reformado e decorado. Começava agora a ficar a seu gosto, mesmo que ainda faltasse a escrivaninha no quarto e o aparador na sala. Não seria difícil alugá-lo, mesmo mobiliado, bastava ligar para o Bira, excelente corretor que intermediou a própria compra. Certamente não tardaria em alugá-lo, mas talvez fosse melhor mesmo vendê-lo e desvencilhar-se de qualquer vínculo com aquela vida. Falaria com Bira, era melhor anotar.

Os bonsais, poderia, é claro, levá-los. Eram pequenos, mas eram tiranos. Exigiam dele um cuidado diário, doses exatas de água, sol, e pequenas podas. Amava seus bonsais tanto quanto os odiava. Mais de uma vez trocara seu almoço por uma hora de trânsito para voltar a casa e verificar se estavam superexpostos à luz ou se lhes faltava água. Talvez fosse melhor deixá-los... mas não podia permitir que simplesmente morressem, depois de tantos cuidados. Talvez o japonês da floricultura os quisesse. Falaria com ele, era melhor anotar.

Restava apenas planejar o que fazer com os amigos. “Amigos:”, anotou no alto da página seguinte. Ergueu o lápis e o rodou entre os dedos, perdendo-se alguns instantes em sua destreza. Engraçado como ainda conseguia preservar aquela habilidade desenvolvida nos tempos de escola, enquanto nas aulas de física girava o lápis entre os dedos, sonhando ser Bruce Lee ou Chuck Norris girando seu nunchako. “Fabio”, anotou na linha seguinte. Não precisaria avisar-lhe, bastava mudar o endereço da correspondência, já havia muito que apenas se falavam por carta. Voltou a girar o lápis. Simone e Walter, fazia tempo que não se falavam. Não sabia se tinha ainda o número. No restaurante, a Vanessa, garçonete com quem sempre trocava alguns gracejos, sentiria sua falta. Talvez fosse o caso de avisar-lhe, seria um sorriso a menos em sua rotina no self-service.

Ainda esperou alguns instantes, no afã de lembrar-se de detalhes ignorados, mas o sono, adestrado às 11, começou a impor-se. Decidiu revisar a lista antes de dormir:
 
- Avisar Miranda.

- Encerrar academia.

- Ligar para Bira (apê)

- Falar com japonês (floricultura)

- Amigos: Fabio (correspondência). Simone e Walter? Vanessa (restaurante)

 Não faltava nada e nada, enfim, havia para largar. Decidira, depois de um inesperado sopro de ar, provavelmente uma corrente de vento sussurrada na noite do incipiente inverno, que teimara em interpretar como um mesto sinal, que tudo (nada) deveria largar. Melhor era dormir, que amanhã deveria acordar cedo, a tempo de preparar sua vitamina de frutas, apanhar a toca, a sunga, os óculos e a toalha verde desbotada para não se atrasar para a natação. Chegou cinco minutos antes das seis. Aproveitou os cinco minutos para soltar a musculatura ainda tensa. O trapézio ainda doía. Deixou os bíceps para o final e, quando chegou, com os olhos ainda marejados, o professor o autorizou a entrar na água tíbia e adormecida. Mergulhou e nadou seus habituais dois mil e trezentos metros. Cristina não apareceu. Parece, segundo dizia o professor, que esta gripe era mais forte que a habitual, era melhor cuidar-se, pois chegava o inverno.

domingo, 14 de setembro de 2014

Um argumento matemático para o respeito no trânsito


Ao andar pelo trânsito de São Paulo, tem-se a nítida impressão de que, na opinião de cada motorista, ele ou ela é a pessoa mais importante do mundo e de que a sua pressa é mais importante que a dos demais.

O que proponho aqui corre o risco de ser taxado de john-lennoniano, utópico, até hippie, mas na verdade é um argumento puramente matemático:

Idealmente cada motorista deveria dirigir como se o outro (outro motorista, pedestre, ciclista) fosse a pessoa mais importante do mundo. O que muda? Por que digo que se trata de um argumento matemático? Vejamos:

No primeiro modelo, quando “eu-motorista” me considero a pessoa mais importante do mundo, “eu-motorista” serei o mais importante do mundo para apenas 1 pessoa, andando no meio de vagas de outros “eu-motoristas” que também são importantes apenas para 1 pessoa.

No segundo modelo, quando “eu-motorista” considero o outro a pessoa mais importante do mundo, “eu-motorista” serei o mais importante para milhares (milhões) de pessoas, o mesmo acontecendo com cada um dos demais “eu-motoristas”.

O ganho matemático é inquestionável! De ser o mais importante do mundo para 1 pessoa, “eu-motorista” passo a ser o mais importante para milhares (milhões). Talvez assim, as pessoas tão habituadas a guiar-se por critérios estatísticos e de produtividade, possam aceitar uma mudança de conduta e paradigma!

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segunda-feira, 25 de agosto de 2014


A velocidade média no horário de pico nem chega a 25 km/h.
...
A 30 km/h é possível percorrer a maior parte da cidade e em menos de uma hora.

O paulistano (e em geral o habitante de todas as metrópoles) vive na ilusão da velocidade.
Pensa o mundo atual como um cenário em transformação frenética e com conexões instantâneas. Com um pequeno distanciamento, porém, seria fácil constatar que vive em uma ilusão de velocidade. O sol continua nascendo como quer, nascemos e morremos como antes, sofremos e nos alegramos como sempre. Mas para não fazer disto algo muito filosófico, focarei no trânsito.

Na maior parte do dia, a velocidade média dos carros não chega a 25 km/h devido aos inúmeros engarrafamentos e a 30 km/h é possível percorrer praticamente toda a cidade em menos de uma hora.

Como muitos saberão, costumo deslocar-me de bicicleta. No trânsito, frequentemente observo a seguinte situação: sou ultrapassado por um “veículo não identificado” a velocidade astronômica, a 60, 80, 100 km/h ou mais em ruas residenciais! O carro passa zunindo ao meu lado como ironizando meu muscular esforço ao pedalar. Mas eis que 100 metros depois, encontro o mesmo “veículo não identificado” (agora sim identificado) no semáforo ou no congestionamento em frente. Passo por ele, sorrindo com meu esforço muscular e a alegria de não precisar me estressar com o trânsito. O processo se repete várias vezes.

O que o tal “veículo não identificado” conseguiu acelerando a tais estratosféricas velocidades? Nada, não conseguiu chegar antes por isso, apenas viveu a ilusão da velocidade.

Se, porém, o único problema fosse a “ilusão da velocidade”, isto não me importaria tanto. Cada um que viva na ilusão que deseja, eu mesmo tenho as minhas. Porém, a tal ilusão de velocidade do carro tem algumas consequências bastante concretas.

Se um cachorro, uma criança ou um pedestre em geral tentasse atravessar a rua naquele instante em que o veículo foi capaz de acelerar para alimentar a sua ilusão, o resultado poderia seria trágico.

Ou seja, a consequência concreta da tal ilusão de velocidade é clara:

Um pedestre morre por dia atropelado em São Paulo. E aqui não estou considerando outros grupos de vulnerabilidade.

Cito aqui um dado importante sobre a relação entre velocidade e mortes:

“Pesquisas feitas no exterior sobre a relação entre a velocidade de impacto sobre o pedestre e a gravidade dos ferimentos causados revelam o seguinte: a uma velocidade de 32 km/h (20 milhas) a probabilidade de um pedestre atropelado morrer é de 5%; se essa velocidade dobra, isto é, atinge 64 km/h, a probabilidade de morte aumenta 17 vezes, ou seja, é de 85%. E se atingir 80 km/h pode-se afirmar que a morte é praticamente certa.” (Fonte: http://www.pedestre.org.br/pedestre/noticias/pedestre-sp)

Para os incautos idólatras da ilusão da velocidade, esta proposta poderá parecer radical, mas basta que usem a razão e levem em consideração os argumentos acima. Se de fato há interesse em reduzir as mortes no trânsito é urgente adotar o limite de velocidade de 30 km/h na cidade de São Paulo e, evidentemente, tornar a fiscalização mais eficiente, o que certamente é um capítulo a parte.

Para aqueles que precisam de referências do “primeiro mundo” para validar uma ideia, lembro que em capitais como Londres, já há bairros que adotam a velocidade máxima de 30 km/h (20 mp/h).

De todos os modos, aqui apresento a proposta Sampa 30 kmh.

Se você concorda, compartilhe esta ideia (não necessariamente no Facebook ou nas redes sociais, mas na sua verdadeira esfera social).

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terça-feira, 29 de abril de 2014

“Ah, passado, passado, por que me persegues assim? Porque não posso andar na frente.”



“As fotos congelam o tempo” é uma frase bastante comum, quase um clichê, que ouvimos e repetimos frequentemente. Mas os clichês costumam ter dois efeitos: a sua aceitação ou rejeição imediata. Em ambos os casos, porém, escapam à reflexão, são relegados ao campo morto das verdades irrefutáveis ou das coisas sem importância (sinônimos quiçá?). Às vezes, como eu mesmo não sou mais que um clichê, uma repetição gasta de inúmeros outros seres que passaram por este mundo, desconfiados e ruminantes entre a esperança e a desesperança, calvos e risonhos por vezes, embora com um riso triste se olhado de perto, frequentemente sou tomado por um desejo de analisar os clichês. Talvez seja esta uma das principais funções ou atribuições ou, ainda, sinas de um estulto. Pois bem, voltemos às fotos. Elas congelam o tempo. A rigor não o congelam, pois o tempo passa a despeito de toda imobilidade da imagem que aprisionam. E se formos capazes de tirar o olho do conteúdo estático da foto e olharmos para ela enquanto objeto ou suporte, veremos que nada tem o tempo de congelado. Lembro-me de minha foto sépia, verdadeiramente sépia e não por obra de um tosco efeito de computador, que na parede do quarto que eu ocupava na casa dos meus pais mostra a criança de quatro anos, com um uniforme amarelo (imagino-o amarelo, pois a foto era em preto e branco), com a língua para a fora no canto da boca devido à timidez. Sei que a criança sou eu, e a foto já está praticamente toda apagada. Com quatro anos permaneci lá todos estes anos, mas hoje é quase apenas uma moldura de madeira e uma placa de compensado apagada. Rapidamente os mais neófilos responderão que hoje as fotos digitais têm maior esperança de vida ou que em condições de preservação museológicas, ela poderia ter tido mais sorte. Sim, verdade. Dou-lhes isto. Mas ainda assim, as fotos digitais do meu HD dependem da vida útil do dispositivo, dos dispositivos de cópia de segurança, da minha capacidade de reproduzi-las e, em última instância, da garantia de existência de todos os recursos que permitem a sua preservação, quer seja a minha capacidade de sustentar esta estrutura ao longo dos anos ou a capacidade da humanidade de sustentar estes recursos ao longo dos anos. Em última instância, os computadores, a eletricidade, as molduras de madeira e até os museus deixarão de existir e tempo reinará soberano sobre a memória das fotos que um dia ousaram desafiá-lo segundo as más línguas atreitas a clichês.

Mas não é preciso que cheguemos a extremos, não sejamos tão catastróficos, as fotos congelam o tempo enquanto vivemos, enquanto duram os suportes, enquanto dura a nossa memória. Enquanto dura a nossa memória? Sim, pois sem ela aquela foto em meu antigo quarto, mesmo apagada, não seria a mesma e talvez nem seja a mesma, os meus olhos mudaram, não os da foto, mas o que a olham. A olham mais baços, tão baços quanto a foto. E o que dizer da foto que encontrei na rua certa vez da moça sorridente. Ela está lá, “eterna” segundo dizem, com seu sorriso no asfalto. Não sei quem é, não sei como foi parar lá. Mas está. Congelada em um tempo de não existência, ela jamais existiu para além da imagem e jamais existirá, a menos que eu venha a conhecê-la. E ainda assim não será mais aquela.


O tempo destrói então o suporte da foto, o tempo corrói a minha memória (sei que ele também constrói, ele também sana, mas como clichê do pessimismo que sou, falo apenas da destruição, da corrosão) e quando olho as fotos nos meus arquivos, não vejo o tempo congelado, vejo as minhas memórias, o momento exato em que tirei cada uma delas, vejo o que o tempo fez com seu inclemente cinzel, como tolheu o que outrora me dera, como me dá o que outrora prometera, como nem dá nem toma, é e passa. Vejo em cada uma das fotos as curvas e linhas, as cores e manchas, as expressões e o movimento, tudo congelado, mas sinto vivo cada um dos momentos em que apertei o disparador da câmera, cada sensação, o vento que me soprava o rosto, o cheiro da dama da noite, o som dos carros apressados que não compreendiam o que eu fazia em uma ponte tão suja, os passos dos pedestres assustados, a minha própria razão de ser sem razão, do clichê sem razão. E o tempo? Nada... Arrogante e indiferente a todo pulsar, pulsar-clichê, do meu desejo de deter o seu ímpeto, de tomar-lhe o cinzel, de ser seu dono, de congelar o seu ser...

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