quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Cosa dire?

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Excerto da entrevista concedida a Pessoa Muito Crítica sobre "Uma noite verborrágica"

PMC: O que o motiva a empregar palavras de pouco uso e pouco conhecidas em seus textos? Vc não acha que isso denota certa arrogância?

J: Bem, não acho que se trate de arrogância, pois isso significaria que me arrogo um status superior e minha motivação seria humilhar meus interlocutores. Não é essa minha intenção, simplesmente divirto-me conhecendo, pesquisando e empregando palavras menos usuais, muitas vezes abandonadas em entediados verbetes de dicionários. Divirto-me utilizando um pouco mais que as, sei lá, digamos 50 mil mais habituais. Para isso, existe o jornalismo. Enfim, o que me motiva é divertir-me encontrando outras palavras. Talvez seja um amor inexplicável por este idioma que considero um dos mais bonitos e ricos que conheço. Não conheço tantos, mas alguns...

PMC: Mas vc não acha que isso pode desagradar a algumas pessoas?

J: Certamente, mas não se pode agradar a todos, aliás, não se deve agradar a todos. Talvez não se deva mesmo agradar a ninguém. São solilóquios...

PMC: Isso não dificulta a compreensão do conteúdo, a comunicação, fim último da escrita?

J: Acho que não. Em primeiro lugar, o contexto, a meu ver, é compreensível, mesmo com a presença de termos mais incomuns. Em segundo lugar, não tenho certeza que a comunicação seja de fato o fim último da escrita. Talvez se trate mais de expressão ou salvação, como afirma Edmundo Desnoes. Há, ainda, um último aspecto importante. A pergunta, a meu ver, implica uma dicotomia entre forma e conteúdo, há muito questionada tanto por quem produz como pelos teóricos. Não acho que esse conto seria esse conto com outra forma. Explico-me. Trata-se, com exceção do final, da narração de uma situação bastante ordinária, no sentido de um evento rotineiro, cujo conteúdo, alguns diálogos de bar, não tem grande transcendência além da curiosidade evocada pelas diferentes posturas dos protagonistas. A utilização de uma linguagem mais formal, no lugar da reprodução do estilo coloquial de uma situação como essa, cumpre uma função, a saber, a criação de uma tensão entre esse caráter ordinário do evento com o extraordinário (refiro-me à linguagem não cotidiana) da narração. Portanto, resumindo, não se trata, em minha opinião, de arrogância, mas sim de um estilo carregado dessa tensão e, acima de tudo, uma forma de divertir-me.

PMC: E quanto à alegação de que o final do conto apresenta uma ruptura pouco crível, de forma que o elemento transformador é introduzido abruptamente, quase como uma punição moral do personagem, que poderíamos considerar protagonista?

J: Sim, eu concordaria plenamente, se isto fosse ficção. Às vezes contamos algumas coisas da vida que na ficção parecem pouco críveis. É irônico...

PMC: Ainda assim, insisto que vc soa como um arrogante, que não produz mais que um compêndio de termos fora de uso, que não resistiria à primeira sugestão ou crítica.

J: Bem, respeito sua opinião. Não me vejo como arrogante, mas isso cabe aos outros julgar. Mas gostei disso de um compêndio de termos fora de uso, embora para isso esteja o dicionário. Quanto à sugestão ou crítica, adoraria tê-las, pois ao escrever assim dou a cara a tapa, o que em todo caso acho melhor que imitar ou reproduzir estilos de outrem ou amplamente aceitos.

PMC: Muito obrigado. Vá se foder.

J: Obrigado a você. Foda-se também.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Uma noite verborrágica - em terceira pessoa

A pizzaria era pequena e esforçava-se por criar um clima de aconchego, com mesas suficientemente espaçadas e bem decoradas. Mas o que mais motivara J a sugerir o local fora o fato de servirem pedaços de pizza, permitindo que cada um escolhesse seu sabor sem que houvesse a necessidade do penoso consenso, após árduas negociações sobre preferências e restrições, na escolha da pizza. Azeitona de jeito nenhum, Minha massa mais fina, Nada com calabresa. Como sempre, M mostrou-se insatisfeita com o ambiente, julgando-o pouco requintado. Obviamente não manifestou sua insatisfação verbalmente, mas seu corpo o deixava claro e tanto ela como J sabiam disso. P, por outro lado, parecia contente e não se incomodava com nada enquanto escrutinava o cardápio. J estava ainda algo impressionado com aquela noite, ao típico ritmo de M que se empenhava em estender, comprimir, entortar as horas, os minutos, os segundos, para atender aos inúmeros compromissos sociais que ela mesma se impunha. Não tinha sido o ritmo o que o impressionara, a isso J estava acostumado dada a estreita convivência nos últimos meses, mas sim o incomum evento ao que assistiram minutos antes.

Deixaram às pressas o Festival de Curtas na Cinemateca, sem esperar o encerramento da última sessão, pois às nove deviam encontrar-se com P no auditório do Ibirapuera para assistir a um concerto de um renomado pianista, mas não suficientemente renomado para ser do conhecimento de J, justiça se faça, no entanto, isto mais se devia a ignorância de J sobre o mundo da música que ao alcance da meritória reputação do artista. Às nove em ponto chegaram, deixando o carro o mais próximo possível da porta do auditório, pois era uma das noites mais frias do ano e, mesmo sob volumosas jaquetas, um iracundo vento enrubescia os rostos de J e M. Finalmente, encontraram-se com P, mas fazia-se hora e M mal teve tempo de apresentá-la a J. Entraram os três no opulente auditório de imenso pé direito e com quase 1000 poltronas distribuídas numa largura que em muito excedia a extensão do palco. P tinha os convites para os três, cortesia do órgão em que trabalhava. Sentaram-se na segunda fileira, o que não custou muito, pois o público não passava de um grupo de no máximo 20 pessoas. Aquela platéia repleta de ausências – perdoem-me pelo pueril oximoro – dava ao concerto uma aparência de ensaio ou reunião de família que discrepava tanto com a ingente arena quanto com o aparotoso cenário. Os músicos, bastos em virtuose, encerraram sua apresentação em meio aos aplausos, que pareciam algo peripatéticos ante o silêncio estrepitoso (insisto nos oximoros) das poltronas vazias, e alguns pedidos de bis, que J e M pareciam esperar que não fossem atendidos, não pela qualidade da música, inquestionável, mas sim pela fome e pelo cansaço após o corrido dia. Mas prevaleceu o contrato tácito entre público e músicos e estes retornaram para mais um breve número. Novos aplausos e podemos retornar, após este pequeno excurso, que os mais objetivos poderão considerar algo desnecessário, à aconchegante pizzaria.

Ao redor de uma mesa redonda com seis lugares, M, sentada ao lado de P, finalmente a apresentou a J que se acomodara em frente das duas deixando uma cadeira vazia a seu lado. P quis saber como M e J tinham se conhecido, M se encarregou de falar sobre o mestrado, sobre o Diplô, sobre os diversos projetos que tinham juntos. J não conhecia P pessoalmente, mas sabia algo sobre ela, pontas soltas de relatos que sua esposa lhe havia feito, pois as duas eram afilhadas da "Tia Z” na Bahia, as duas se conheciam de infância e sabiam algo uma da outra por intermédio da madrinha em comum. Mundo pequeno, maravilhou-se P, preciso contar isso para Tia Z, ela não vai acreditar. Sempre que ouvia essa afirmação, J sentia-se fortemente compelido a refutá-la, muitas vezes sentia que não pagava a pena, ou a saliva, meter-se às pugnas por tão pouco, mas essa noite ele estava especialmente pontilhoso, mais do que de habitual. Não é o mundo que é pequeno, mas sim os círculos. Embora a população mundial já ultrapasse seis bilhões, o círculo de pessoas com quem podemos ter coisas em comum é muito menor. Por exemplo, certa vez um amigo de minha irmã que estudava com ela foi à Patagônia e abrenhou-se nos confins do território austral onde não havia nada nem ninguém, com exceção de outro rapaz com os olhos igualmente perdidos naquele ermo cenário. Viram-se e começaram a conversar. Quando o amigo de minha irmã disse que morava no Brasil, mais especificamente em Campinas, o outro contou que tinha uma conhecida, prima de seu melhor amigo lá. Anegaram-se nos detalhes, até perceberem que se tratava da mesma pessoa. A coincidência que ressumou da conversa os impressionou e naquele mesmo arrabaldado e gélido local trocaram calorosos abraços comemorando algo que não sabiam bem o que era. Não era a primeira vez que J fazia esse relato, porquanto notava-se-lhe certo tom, senão mecânico, algo gasto. As palavras rebuscadas, assumamos-lho, deve-se mais as firulas estilísticas do narrador que se deu a licença de abandonar o estilo coloquial pertinente a uma mera conversa de bar. Até aí poderíamos ratificar que, sim, o mundo é pequeno. Mas J apressou-se em esclarecer, Qual seria a possibilidade de que em vez de dar-se com um portenho, de classe média, universitário, branco, perdido no cu do mundo, o mesmo diálogo se desse com um afegão muçulmano recém saído de sua peregrinação à Meca? Não é o mundo que é pequeno, mas sim os círculos. P mostrou-se pouco interessada em rebater o aparentemente inconsútil argumento de J e M apenas anuiu com um gesto rápido, talvez já até tivesse ouvido o mesmo relato.

Os pedidos, as bebidas, dois pedaços, M não queria nada, pediram crostinis para que ela comesse algo. O tema do bate-papo, ignoro como, pois este narrador mais que onisciente, é um tirano que esculpe os diálogos, todos reais, exare-se já, a seu bel-prazer, mas com bondosas intenções, desviou-se da Patagônia para avoengos tempos. P contou a saga de seus pais numa migração cheia de percalços, J também narrou a história de sua família marcada por constantes fugas, seu bisavô, não lembrava qual, afinal eram oito e, já dos quatro avós, apenas uma avó conhecera, tinha colado os dedos de seus pés para fugir de exército e emigrado da Rússia para a Argentina. Também contou de uma bisavó que viajara com sua filha embaixo da saia para que não a roubassem, prática comum nas trimestrais travessias marítimas daquele então, enquanto outra perdera dois filhos numa viagem similar e de tanto chorar, segundo lendas da família, ficara com um olho de cada cor. Falou de seus pais, que também fugiram da Argentina no início da década de 80 em função da ferrenha ditadura, com ele e sua irmã a tiracolo e arrematou ironizando, e daqui para onde irei? Após um breve silêncio, ou para o bem da verdade, algumas mastigações algo ruidosas, P concluiu com certa alegria que nossos tempos eram muito melhores e, por sorte, não passamos por tantos sofrimentos.

Já comentamos antes que J estava especialmente irascível naquela noite, mas a seu viso P cometera com aquela afirmação um dos mais imperdoáveis pecados de um raciocínio, a falta de uma perspectiva histórica. Comparar épocas, quer seja para louvar um passado longínquo, do qual desgraçadamente nos desviamos para atingir o decadente status da sociedade atual, parca em valores e tradições, ou para deslumbrar-se com os quiméricos avanços da humanidade, era para ele um tremendo erro. Épocas não se comparam, dizia J acerbando, sem perceber, o diálogo. Como não sofremos? Há miséria por toda parte, crianças nos semáforos, favelas, fome, etc. Sim, mas eu não acho que nós soframos diretamente como nossos avós, retorquiu com calma P. Como não? Desatou, então a falar da classe média paulistana, que se trancafiava em seus condomínios, pagava vigias, blindava carros, dos assaltos, do fato de cegar-se nos semáforos colmados de malabaristas mirins, munidos de limões ou batutas, fechando a janela, ligando o som ou simplesmente distraindo-se com sms`s ou celulares. Citou Foucault, a política é uma guerra silenciosa, falou das balas perdidas no Rio. Sim, mas não vivemos em guerras, insistiu P. Como não? Neste século, poucos foram os anos sem uma guerra. Mas não aqui. Claro que sim, insisto na guerra silenciosa, nas estatísticas que mostram um número maior de vítimas da violência urbana que em diferentes zonas de guerra, da violência institucional da polícia contra os pobres, da situação dos negros parados em qualquer lugar e sem nenhuma razão pela polícia! J mostrava-se disposto a continuar em seu esforço para fazer com que P se precatasse da falta de perspectiva histórica de sua colocação. M, ao contrário de J, parecia pouco disposta a falar, lançava escassas afirmações secundando o ponto de vista de J, com quem costumava concordar, e algumas outras para desbastar aquela já chispeante conversa. P, por fim, não contra-argumentava, mas mostrava-se inamovível em sua opinião. Não sofremos.
Não houve nenhum acordo, consenso ou, ao menos, alguma concessão e, por estranhos e sibilinos caminhos, desses que as conversas de bar soem ter, o próximo assunto foi o budismo. Aparentemente, P começara a aderir ao budismo. Desta vez, foi M quem começou, com maior polimento que J, pois sua maneira de falar era muito mais branda e, em nada se parecia aos acutiladiços modos demonstrados por ele naquela noite, a questionar a posição de P. Dizia que o que lhe irritava no budismo era uma certa aceitação do estado das coisas, uma certa passividade perniciosa. J pouco se manifestou, apenas quis registrar que não sabia muito sobre o budismo, mas achava que a leitura ocidental, rotineiramente traduzida na afirmação de que uma transformação na sociedade só era possível a partir da transformação individual dos sujeitos, geralmente redundava em inércia e indiferença, especialmente se lembrássemos que se trata de uma "religião" ou filosofia tão praticada em uma sociedade de castas em que milhões de crianças habitam barracos às margens de esgotos e puteiros. M acrescentou algumas comparações entre o cristianismo e o budismo, sem defender nenhum dos dois, mas o tema novamente mostrou-se controverso.

Mais um pedaço de pizza, J repetiu o seu sabor, P pediu outro, M apenas beliscou um pouco do pedaço dos dois e tomou, acompanhada por P, uma taça de vinho, muito a convir para uma noite tão fria. O tema, novamente pelos típicos meandros de conversas de bar, era a velhice. Dos três, J era o mais velho, tinha 32 anos, M e P aparentemente tinham quase 30, não faltará a este narrador a finura ao revelar precisamente a idade das moças. O fato é que de questões políticas, passaram a existenciais comentários sobre a vida, a solidão, P saíra recentemente de uma relação longa, e a velhice. J contou que em sua família seus avós não eram muito longevos, com exceção de sua avó paterna, falou especialmente de seu avô materno, quem morrera aos 33 anos, idade que teria em dois meses, de câncer nos testículos. P afirmou que em sua família era o contrário. Neste momento, J lançou outra de suas já gastas frases de efeitos, certamente utilizada em diversas conversas existenciais e pseudofilosóficas. Achava-a tremendamente forte e com acrimônia dizia, Às vezes vejo um velho, arrastando-se com um bastão – pensava em um vizinho com as pernas inchadas, a boca semicerrada, o olhar ao chão e sua boina branca protegendo do sol sua gasta pele –, e fico pensando, é essa a melhor sorte que podemos ter? A decrepitude? Com sorte chegaremos a isso. Fez essa última afirmação com certa sorna, esperando que finalmente naquela noite houvesse um consenso, ao redor do poderíamos chamar mito de James Dean, Jimi Hendrix, Jim Morrison, Janis Joplin, figuras imorredouras, mas todas mortas. Dito parecia tão bonito, a existência resumida à sua primavera... Mas P, com a mesma calma que mantinha desde o início da conversa, ousou discordar. Eu não sei, acho tão bonito quando vejo um velho, tanta sabedoria, tudo o que viveu, a experiência. J nem quis retorquir mais nada, aceitou aquela visão, pueril aos seus olhos, quase podia ver a hollywoodiana cena do avô dando conselhos a seu inquieto neto, exalando sabedoria por cada poro de sua enrugada pele. Pediram a conta, pagaram e foram embora os três no mesmo carro. Cada um pensando naquela noite tão verborrágica. Apesar de tudo, os três disseram ter gostado da conversa. M pensava na ingenuidade da amiga. P não parecia incomodada, mas J se perguntava se não teria sido demasiado pungente, mal conhecia P e argumentara com tanta contundência. Algum dia talvez pedisse desculpas, mas o que podia fazer, assim ficava quando o tema o instigava. M deixou J em seu carro que tinha ficado na cinemateca e deu uma carona a P até sua casa. J dirigiu sem prestar muita atenção ao caminho, repassando a conversa, o que J não sabia era que em sua boca, a mesma que dera cabo a dois pedaços de pizza – era moderado ao comer –, a mesma que esgrimira argumentos com tanta paixão a favor ou contra do que fosse, em uma noite algo estranha, nessa mesma boca, residia, ameaçador e silencioso, um tumor de 1,5 cm, um osteossarcoma. Um caso raro, aflige a 2% da população mundial apenas, segundo o semiologista, era o que na medicina se chama acidente de percurso, sem explicação e independente do estilo de vida. Não sabia que dali a algo mais que um mês seria operado, passaria por momentos que jamais imaginara, viveria um tratamento tão duro e enquanto receberia o medicamento na veia, lembraria daquela conversa. Pensaria sobre o que dissera acerca da velhice, como julgou ingênuo o olhar de P. Naquele momento, voltaria a pensar em seu vizinho, na velhice, e reafirmaria, mas agora sem nenhuma ironia, que aquela era a melhor sorte que alguém poderia ter. As rugas, a vida, acumuladas em passos lentos e lembranças, que se desfaz aos poucos, mas existiu em toda sua intensidade, aquilo era mesmo belo, daria a razão a P, era a beleza do improvável que vence dia a dia as estatísticas, os perigos, as balas perdidas do Rio, as turbinas defeituosas do avião, as bactérias letais das ostras mal conservadas, os acidentes de percurso, é o milagre que não se explica, o triunfo, mesmo que temporário, mas que não se deixa nunca enuviar, contra o temível orco. Quanto a este narrador, despótico, mas bem-intencionado... nada. Só quis experimentar, exercitar, a terceira pessoa, omitir nomes, à moda Hemingway ou, ainda, ao estilo dos relatos psicanalíticos, quem sabe tratar J, M e P como seus objetos, sua criação, seu mundo, sua própria ficção.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Homenagem aos últimos desertores ou a saga dos heróis da resistência

Durante anos foi uma inclemente e incessante luta contra os ditames da genética que fizeram da calvície norma entre os homens de minha família, precoce em geral. Esta se tornou uma ameaça inesperada, mas iminente a meus olhos, aos 23 anos. Nessa época levava o cabelo pela cintura aos moldes tradicionais de um estudante, embora renegado, de ciências humanas. Comecei a observar que o risco que se formava na faixa central do cabelo tornava-se cada vez mais amplo, perigando merecer a denominação avenida. Foi o estopim para a decisão de cortar o cabelo. Um momento de grande proeminência neste histórico capilar que me proponho agora a fazer. Acorri ao salão de Elza, cabeleireira que se ocupava de meus cortes em minha infância, para, diante das lágrimas reprimidas da Inara, minha esposa, mulher, companheira, ou seja lá o termo politicamente correto para não incorrer em um eventual machismo, cortar aquelas madeixas cultivadas ao longo de não menos que seis anos. Para minha surpresa, porém, ao terminar o corte, não mais que uma tesourada desferida contra uma trança indefesa, trinta centímetros de cabelo entrelaçado que até hoje repousam protegidos em uma sacola de pano ao fundo de uma gaveta de meu escritório, Inara exclamou com alegria que havia gostado. Aos poucos dias confirmava que gostava até mesmo mais de meu cabelo cacheado e curto do que antes. A fase do cabelo a la ciências humanas ficava para antanho enfim e na mesma gaveta que abrigava a trança deveria ter guardado o diploma de bacharel em ciências sociais.

O cabelo cacheado não me desagradou, afora as facilidades que o novo corte trazia: não mais despendia meia hora desembaraçando o cabelo com um pente de dentes espaçados sob o sopro esbaforido do sobrecarregado secador, agora bastava sair do chuveiro, esfregar a toalha e sair. Neste momento, é necessária uma breve regressão aos anos oitenta, quando eu ainda morava na rua oito. O cabelo cacheado naquele então, saberão disso todos aqueles que tenham apresentado esse fenótipo durante a referida década, era razão de traumas e incômodos. Por alguma razão, suspeito que relacionada aos heróis mirins e juvenis dos filmes de hollywood, sempre com cabelos lisos e franjas laterais, os cachos destoavam do padrão estético predominante. Desta forma, recordo em minha rotina matinal, antes de sair para a escola, meu empenho herculano em molhar o cabelo e com um insistente pente estirar cada cacho para o lado, enquanto o sol ainda se esforçava para despontar no céu. Era, no entanto, um vão esforço, pois já na esquina de minha casa, enquanto caminhava rumo à escola, num motejo irreverente, os cachos voltavam a formar-se à primeira aragem. Mas essa fora apenas uma fase, talvez na pré-adolescência, quando invejava o cabelo liso e escorrido de Renato. Em outros tempos, meu cabelo fora uma marca inconfundível. Até os 10 anos, tinha o cabelo longo, até o meio das costas, mas com um corte diferente do descrito acima. Eram outros os tempos, início dos anos oitenta, portanto pouco poder-se-á condenar-me por tê-lo usado longo embaixo e aparado em cima, ao estilo Roberto Matias (Fábio Júnior em Roque Santeiro) ou também popularizado por Chitãozinho e Chororó (sic). Aquele penteado rendeu-me vários apelidos, mas o que mais recordo é cachinhos dourados, ou algo assim. Certa feita, em Buenos Aires, creio que no teatro Colón, dirigia-me ao banheiro masculino, quando um guarda exasperado me chama para corrigir-me e dizer-me que o sanitário feminino se encontrava na outra ala. O equívoco só se desfez quando me virei, pois, por fortuna, meu rosto sempre foi bastante masculino. Desculpou-se. Logo enjoei daquele penteado, não sem antes resistir durante anos ao acosso de meu avô, quem sempre me oferecia dinheiro para que cortasse aquele cabelo, afeminado aos seus olhos. Finalmente, para sua satisfação, cortei, mas não pelo dinheiro, foi mesmo por princípios. Mas não me deixaria vencer tão facilmente pelo convencionalismo, pedi à cabeleireira que deixasse um único cacho, também conhecido como rabinho ou rabicho. Novamente, aquela inovação tornou-se uma marca rapidamente reconhecida na escola.

Após essa descrição extemporânea de minhas pueris aventuras capilares, retornemos a tempos mais atuais, quando aos 26 anos confirmo as suspeitas da impiedosa influência dos genes familiares, meus dois primos mais próximos já utilizavam a cabeça rapada, e decido procurar uma dermatologista para saber o que se pode fazer ante a temível ameaça as minhas agora apreciadas madeixas. Lembremos que a década já é outra e também por estranhas razões os cachos caíram no gosto popular. Não apenas são apreciados como em uma de minhas tantas ocupações favorece-me imensamente. Na publicidade, os cachos passam a compor um dos perfis mais solicitados e como ator, por alguns anos somente de publicidade, isso se tornou uma boa vantagem. Nesse contexto, ver a ainda incipiente queda dos fios levou-me à doutora Miriam, quem me receitou Propécia (finasterida), único remédio até hoje conhecido que, se não evita, retarda e diminui bastante a queda. Foram três anos tomando o comprimido, toda noite antes de dormir, até consultar um urologista, calvo por sinal, que me alertou para os perigos de um uso contínuo. Eu sabia de casos de pessoas que tinham tomado o comprimido durante dez anos, sem ter nenhuma conseqüência, também já tinha sido alertado para os riscos, constatados em menos de 1% da população estudada, de que o medicamento provocasse impotência, reversível em todo caso, mas o que comprovadamente não ocorreu comigo. Ainda assim, o médico, que parecia não simpatizar com o comprimido, assustou-me um pouco mais ao solicitar-me uma série de exames, incluindo níveis de testosterona e condições do fígado, que, por fortuna, não apresentaram alterações. Mesmo assim foi o suficiente para abandonar o medicamento e aceitar parcialmente o destino. Consultei outros dermatologistas que me indicaram xampus de cetaconazol para diminuir a seborréia, segundo eles causa da aceleração da queda, e o uso de Avicis, uma versão de uso tópico da própria finasterida. Com essa combinação ou quiçá pelo próprio ritmo natural da queda, isso jamais saberei, pude manter meus cachos por vários anos ainda. Na frente, escasseavam cada vez mais, mas graças a seu tipo, era capaz de ocultar as áreas menos povoadas, que jocosamente chamava, cunhando um termo para os politicamente corretos, de SCCE, Superfície do Couro Cabeludo Exposta. Portanto em vez de dirigir-se a um sujeito sem cabelo como careca, cabeça de ovo, aeroporto de mosquito, etc., os manuais éticos poderiam sugerir Indivíduo com maior SCCE. Nos últimos tempos, aqueles indivíduos que por ventura medissem mais de 1,70 m poderiam começar a notar o aumento dessa superfície exatamente no topo da minha cabeça ou local onde se assenta o quipá ou solidéu entre os judeus – talvez até esta tenha sido sua origem e causa primeira, cobrir essa incipiente calvície; quem sabe donde de fato surgem as tradições, refiro-me às motivações últimas inumadas sob as pesadas camadas da retórica? Tudo isto, aceitei numa espécie de resignação, mas sem perder a chance de servir-me da zombaria, sou do tipo que “perde o cabelo, mas não perde a piada”. Uma delas, por exemplo, era exaltar: "Garçom, há um cabelo em minha sopa! E o pior, ele é meu!". Mas minha dileta chacota era referir-me aos cabelos derramados, quer seja no chuveiro ou em qualquer outro lugar, como desertores e, por oposição, chamar os que persistiam de bravos heróis da resistência.
Eis aqui como explico o título desta pequena crônica. Hoje, por fim, durante o banho, vagas desses heróis da resistência abandonaram minha cabeça sem mais poder lutar. Era esperado e até desejado. Explico-me sem mais circunlóquios: no início desta semana, o oncologista surpreendeu-se de ver-me ainda com cabelo e só se recompôs ao perceber que o primeiro ciclo de minha quimioterapia fora há menos de duas semanas. “Deve cair na próxima semana, então. Se não cair, você deve nos avisar, pois tem que cair, é o único efeito colateral do qual temos certeza”. Depois dessa sentença, passei a desejar a queda, obviamente que dentro desse contexto tão peculiar apenas. A cada dia, porém constatava a bravura de meus heróis da resistência que, a despeito do prognóstico, não cediam. Ontem começaram a ceder os pêlos pubianos, peço perdão pela intimidade que exponho, mas é relevante para este filiforme relato. Ao tirar a roupa interior, vulgarmente cueca, para tomar banho constatei a presença de uma quantidade dantes nunca vista de pêlos. Ironicamente, os fios da cabeça renitiam enquanto outros já cediam. Claro que isto rendia novas piadas, “se perder os pêlos pubianos e do peito, poderei trabalhar como stripper”, “quando ficar careca, vou demorar menos no banho e secando o cabelo, etc.”. Hoje, porém, no banho os heróis da resistência começaram a tombar já exauridos em sua longa luta, caíam, tenho certeza, derramando as mesmas lágrimas, que a despeito de meu ânimo jocoso, não pude evitar. Vão-se, prometem-me que em breve outros virão quando tudo isto terminar, outros virão, vão-se com a sica traiçoeiramente cravada nas costas e, em últimos e doridos suspiros, desculpam-se "fizemos o que pudemos” e no limite de suas forças, pouco antes de escorrerem derradeiramente pelo ralo, prometem “outros virão”...