segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Ato I – Os debates

Cenário: Mesa redonda com cinco cadeiras. Os integrantes da mesa devem ignorar completamente a presença do público debatendo entre eles e de costas para a platéia.

Mediador: Hic et nunc. Estamos hoje aqui reunidos para dar início ao ciclo de debates Revoluções com os top five intelectuais do mundo inteiro ad hoc selecionados tendo como precípuo critério sua produção analítica acerca do tema que nos ocupa, a saber, os processos revolucionários na atualidade. Antes mesmo de começar e realizar uma breve apresentação dos integrantes – digo breve, pois certamente a fama os precede e dispensa maiores intróitos sobre sua exitosa trajetória acadêmica e profissional – gostaria de descrever a pauta deste encontro, cujo término, atrevo-me a dizer, ficará laureado ad perpetuam rei memoriam, traçando um verdadeiro divisor de eras. Neste ano em que se completam os 220 anos da revolução francesa, progenitora do estado moderno; 50 da cubana, gestora máxima dos mitos emancipatórios da atualidade e, infelizmente para o arredondamento matemático, 92 anos da revolução russa, berço da grande desilusão do os anos 90, podemos sentir no âmago desta grande sociedade global a incipiente ebulição da insatisfação com a ordem estabelecida, mostrando-se um corpo claramente cheto fuor, commodo dentro. Enfim, a pauta deste sui generis encontro resumir-se-ia na seguinte pergunta: Podemos hoje falar em revolução ou revoluções, referindo-nos aos múltiplos movimentos de pressão para transformação social, dentro de um cenário marcado pelo individualismo e pela total indiferença em relação à dor alheia?

Prefácio

Prefácio

Conselheiro/Garçom:

Antes de começarmos este espetáculo, convém realizar algumas advertências. Em primeiro lugar, é mister esclarecer que este é um espetáculo extremamente verborrágico, especialmente em seu primeiro ato, visto ser este um vício, para não dizer falha, do autor. Mas rogo-vos que vos munais de paciência, pois nos atos subsequentes teremos ação propriamente dita para aqueles mais afeitos a esta que à retórica. Atenderemos a todos os gostos, garanto-vos, pois eu pessoalmente negociei com o autor para que isto ocorra. Haverá violência, sangue, quiçá uma violação, para que aqueles mais acostumados a uma dramaturgia alicerçada em perseguições de carros, balas zunindo, pontapés e socos, possam deleitar-se também e, prometo-vos, que haverá ainda cenas de nudez, visto que tais cenas são a motivação de muitos dos frequentadores do teatro. Da mesma forma, não se escapará demasiado da estrutura de uma narrativa tradicional, cujo primeiro ato trará a exposição da situação que conduzirá ao conflito do segundo ato para, enfim, solucionar-se no desfecho ou terceiro ato. Bem, sem mais delongas, faço saber que doravante serei um garçom e não mais farei advertências, a menos que se faça necessário no decorrer do espetáculo. Ab imo pectore, espero que vos deleiteis.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Algumas fotos da vida da Rebel(de)



O link das fotos no picasaweb

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Acerca da imortalidade – Frankenstein transgênico!

“La vida no es la que uno vivió, sino la que uno recuerda y cómo la recuerda para contarla” – Gabriel García Marquez

A despeito do título pretensioso, não buscarei aqui uma definição concreta do termo imortalidade, muito menos farei um histórico de sua utilização. O intuito deste artigo é descrever e analisar uma idéia de imortalidade muito presente no imaginário “popular” – embora popular devesse ser utilizado com certas restrições, visto que algumas conotações do termo poderiam discrepar do principal locus deste imaginário, a saber, as classes médias e mais privilegiadas – na atualidade. Trata-se de uma concepção de imortalidade que privilegia determinados aspectos da vida que, como veremos a seguir, expressam-se na atividade mental, nos sentimentos e, mais especificamente, no prazer. Hoje em dia, uma idéia – por que não esperança? – de imortalidade muito frequente concretiza-se nas especulações muito mais assíduas na ficção que na ciência, embora desempenhem um certo papel, quase sempre ridicularizado nesta última, sobre a conjugação da criogenia com as pesquisas sobre reconstituição genética e inteligência artificial. A esperança de imortalidade hoje aparece fortemente refletida na possibilidade da conservação dos atributos psíquicos incluindo as capacidades intelectuais e sensoriais. Enfim, há uma valorização da preservação da memória em detrimento dos atributos físicos, basta recordar que grande parte das experiências atuais em criogenia são focadas na preservação da cabeça exclusivamente. Não nos interessa aqui discutir a viabilidade destes métodos. A busca pela imortalidade sempre existiu e não surpreende que reapareça com uma roupagem cientificista e, certamente, não tenho competência para avaliar a factibilidade dos intentos. No entanto, é extremamente importante compreender a simbologia por trás da abordagem.

Partamos de uma descrição mais detalhada do que gostaria de chamar mito de Frankenstein renovado. A busca de imortalidade por meio da criogenia associada à genética e/ou inteligência artificial tem sido representada nas artes e, com menos freqüência, na própria ciência da seguinte forma: após a morte do indivíduo, induzida ou não, antes mesmo de sua deterioração, o cérebro é congelado a uma temperatura suficientemente baixa para preservar seus tecidos, mas que não os danifique de forma definitiva (segundo as novas correntes, uma temperatura entre -80 e -100 graus centígrados). Uma vez preservado o cérebro, há duas possibilidades. A primeira caracteriza-se pela reconstituição de um corpo para hospedar a mente que ficara órfã. Esta reconstituição pode ser biológica ou biomecânica, ou seja, uma reconstrução do corpo a partir de informações genéticas ou a criação de um corpo mecânico que reproduza as funções (ou somente aquelas desejadas) do organismo. De qualquer modo, trata-se de providenciar um novo corpo para abrigar a mente preservada. O segundo caminho possível, ainda mais radical e elucidativo no contexto deste ensaio, dispensa a recriação do corpo humano e está associado aos estudos de inteligência artificial e realidades virtuais. O objetivo, nesta segunda abordagem, é construir um mundo virtual que possa hospedar a mente, isto é, codificar os sentimentos e a memória em mídias digitais para dar-lhes prosseguimento em um mundo virtual.

A ficção oferece hoje em dia, por meio de seu principal expoente, a saber, o cinema, inúmeros exemplos da generalização exposta acima, cujos principais destaques poderiam ser Matrix, Vanilla Sky, Exterminador do Futuro, entre muitos outros. A ciência também tem dado mostras de interesse nessa área. Para não cairmos no erro comum de atribuir certos comportamentos e idéias à modernidade – como gostam de fazer alguns verdadeiros neófilos, verdadeiros fanáticos por inovações e “quebras de paradigmas” que a cada momento procuram sinais de um novo tempo e apressam-se a classificar como pós-fato o próprio fato – seria importante ressaltar que não é de nosso interesse tomar este fenômeno por novidade. Por esta razão, apressamo-nos em trazer à lembrança o personagem de Mary Shelley cuja história ilustra com propriedade a simbologia que se pretende descrever.

Evidentemente, uma noção de imortalidade implica e define o próprio conceito de vida. O que é vida passa a ser definido pelas características a serem preservadas, ou seja, aquelas características que passam a constituir no imaginário coletivo o verdadeiro “eu” ou “essência do eu”. O “eu” é, a partir desse momento, formado por esse núcleo apenas e nada mais. Esta fincada, portanto, a baliza entre o “eu” e o mundo externo. O “eu” muitas vezes foi identificado ao corpo. O corpo, no entanto, pode ser visto como um conglomerado de órgãos e organismos vivos mais ou menos interdependentes. Por sua vez, então, o corpo seria mais um desses organismos vivos, formado por outros organismos vivos com relações mais ou menos interdependentes, que formam outros organismos maiores que incluem, por exemplo, o próprio habitat. Por que, nesta ótica, o “eu” não poderia constituir-se do local que resido, do ar que respiro, do alimento que ingiro? Não nos interessa aqui estabelecer uma fronteira exata entre o “eu” e o mundo externo, se é que esta existe. Interessa-nos unicamente o “eu” simbólico presente no imaginário dos indivíduos. Portanto, definir a idéia de vida que repousa (ou se agita) por trás da mitologia acima passa necessariamente pela identificação das características a preservar na imortalidade e nos apontará um caminho na descoberta do “eu”.

No mito de Frankenstein renovado há uma valorização da atividade intelectual e sensorial em detrimento do corpo físico. O corpo físico é descartável, podemos prescindir dele para alcançar a imortalidade, mas não podemos prescindir de nossa capacidade de pensar, mas principalmente de julgar à luz das nossas memórias e experiências, e de sentir. No entanto, a simbologia deste mito é rica e não se limita a esta conclusão. Devemos ir além, desconstruir cada um desses anseios e dar à luz a sua historicidade.

Certamente, perpetuar o pensamento e as sensações é objetivo principal. Contudo, podemos afirmar que existe uma preocupação constante na mitologia em questão com a seleção dos sentimentos a serem preservados e com a memória. Esta última é uma espécie de elo entre aquilo que representou nossa “primeira existência”, tal qual fora “disposto pela divina providência”, e a existência ulterior gerada pela “profana ciência”. Somente a memória caracteriza de fato a perpetuação deste “eu” que queremos identificar, pois sem ela estaríamos falando de pensamentos aleatórios que se sucedem ao longo do tempo sem nenhuma relação. Por outro lado, está patente nas duas formas de ressurreição citadas na nossa parca descrição uma preocupação em destilar dentre as sensações somente aquelas relacionadas ao prazer. Ninguém almeja perpetuar o sofrimento. A criação de um mundo virtual programável ou a construção genética ou biomecânica do corpo são sintomáticos a esse respeito. Uma realidade virtual amigável e prazerosa representa dignamente o que buscamos expressar ao falar em seleção das sensações. Também a construção de um novo corpo traz em seu germe essa idéia, visto que em geral está associada ou ao aprimoramento genético do corpo ou à construção de um modelo mecânico perfeito. De qualquer modo, podemos concluir que o sofrimento está excluído do núcleo que se deseja perpetuar. É possível que o desejo de imortalidade inclua certas dores, angústias e pequenos incômodos, que, ao escolher um mundo virtual no menu de ofertas do “provedor”, alguém optasse por viver em um país de terceiro mundo, em uma cidade como São Paulo, pertencer à classe média com todas as angústias e contratempos que esse modo de vida acarreta, com as dores cotidianas, flatulências, alergias, etc. Mas é bastante improvável que optasse por viver na miséria, com uma história cheia de perdas, doenças e injustiças, a menos que se tratasse de uma curiosidade mórbida e um espírito lúdico, afinal, poderíamos viver inúmeras vidas!

Prazer e memória. Sei que se me acusará de simplista, gosto de simplificar, apesar das inúmeras críticas que este hábito tem provocado ao longo de minha vida. Mas creio que, de certa forma, aí podemos apontar a noção de vida e, conseqüentemente, de “eu” que reflete o mito de Frankenstein renovado. É o momento de submeter esta conclusão a todo tipo de críticas, questionamentos e torturas. Façamo-la falar! Se puder se sustentar por si só, ótimo, teremos que aceitá-la malgrado o desprazer que nos cause.

Antes de iniciar a sabatina, é necessário chamar a atenção para um fato propositadamente negligenciado até aqui, mas assaz ruidoso para deixar-se relevar. Além da capacidade de pensar e sentir, a capacidade de expressar-se também é uma espécie de requisito para a imortalidade. A possibilidade de julgar, opinar e, principalmente, ser ouvido (e aclamado se possível) aparece como uma exigência inconteste das nossas pretensões de imortalidade na mitologia em questão. Não acredito que um indivíduo fosse capaz de almejar uma vida à margem, tomada por pensamentos e sensações, mas que não lhe permitisse compartilhar esta experiência com outrem tal qual um eremita perdido nas montanhas. Sinceramente, penso que todo eremita precisa fazer certa fumaça no cume de sua solidão, Zaratustra deve voltar. Mas não entrarei neste mérito. O que importa dizer aqui é que a capacidade de expressar-se não pode ser colocada na mesma categoria de prazer e memória, por uma razão simples. Expressar-se, no contexto que aqui foi descrito, ou seja, como forma de compartilhar (impor) sensações próprias aos demais, está intrinsecamente ligado à sensação de prazer. É uma forma de obtenção de prazer. Portanto, se citássemos esta necessidade em nossa máxima simplificação estaríamos cometendo um erro de hierarquização e abriríamos uma brecha à entrada de outras características, comprometendo, destarte, a solidez da própria simplificação.

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segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Esclarecimento

Após veementes protestos de alguns ambientalistas, esclareço que não matei, machuquei, feri, esquartejei, cozinhei ou atirei no tal do galo. Foi apenas uma licença poética para destacar o fato de que meu sono assaz treinado com ruídos urbanos de sampa não é interrompido pelos sons de trânsito, gritos, frenéticas buzinas, mas sim por galos, pássaros e outros barulhos da natureza. E isso que estou em Natal, não é nenhuma roça!
Enfim, como diz aquele, a história se inscreve em nosso corpo e segue...

manhã potiguar

Em Natal às cinco e meia
com o sol já a raiar
do sono e sua teia
fujo com o galo a cantar

neste bucólico cenário
ergo meu rifle sanguinário
e mando a porra do galo pro ar!

sábado, 9 de outubro de 2010

Pombitura musical

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quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Sinuosidade by me


quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Ser ou não ser?

depende

será?

...Os anos noventa existiram mesmo? Acho que não.
Não pelo que significaram, vão entre séculos, espera ansiosa pelo temível bug do milênio, cairiam os aviões, as bolsas de valores, as redes? Os caixas de banco se confundiriam e mandariam meus poucos centavos para a conta de outrem? E seria capaz de boicotar os preservativos e espalhar ainda mais a incontinente AIDS? Não existiram, mesmo que agora no natural movimento de heterodoxia versus ortodoxia, a geração da próxima década resgate Curt Cobain, camisa xadrez e a expressão de nada, como a deste decênio fez com as cores dos 80 e Madonna. Foram apenas um vão, escorregadio que absorveu minhas memórias junto com meus cabelos.
E tudo isso porque Nick Cave grita agora nos meus auriculares “Thank you girl, I’ll love till the end of the world” (ela ri de meu mau gosto musical)...

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terça-feira, 5 de outubro de 2010

À produtividade dos hamsters

Hoje estreei o farol de bicicleta que meu pai me deu, o qual é energizado por um dínamo. Sensacional, quanto mais pedalo, mais ele ilumina. É claro, por não possuir um acumulador, assim que eu paro, ele se apaga. Mas é verdadeiramente emocionante ver o lúzio fruto de meu pedalar. Mais tarde, na academia, fiz minha primeira aula de spinning, sendo que frequento academias há mais de 15 anos. Esta ideia não me ocorreu hoje na aula, mas foi nela que a relembrei. Se puséssemos dínamos nas esteiras, bicicletas ergométricas e demais máquinas da academia, encontraríamos uma utilidade preciosa para este contingente de ociosos que participam do sistema produzindo e consumindo ócio. Uma rede conectando a Cia. Athlética, a Runner, Reebok, Fórmula, ACM, entre outras já seria capaz de poupar um pouco os pulmões de Itaipu e nós, hamsters, seríamos mais produtivos! Brilhante! Vou mandar este projeto para o Tiririca “ler” e levá-lo ao congresso!

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Porteñedad

Um conto de Cortázar que me fez rir esta manhã:
http://www.jecnet.com.br/contos/Lucas_sus_amigos.pdf

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sábado, 2 de outubro de 2010

Descoberta

Não foi com pouca surpresa que compreendi minha descoberta e hesitei por algum tempo antes de decidir-me a compartilhá-la com os demais. Foi só quando deixei de temer eventuais reproches e, principalmente, de considerá-la, eu mesmo, um fato que transigia sobre os limiares da lucidez, que aceitei dá-la à luz. Por outra parte, corro o risco de ser, quão bom e velho cônjuge, o “último a saber”, e vir a falar da novidade quando já todos me sobreolham por cima dos ombros como quem dá as boas-vindas ao inevitável. Mas mesmo correndo ambos os riscos, dos reproches e questionamentos acerca de minha lucidez como o de desempenhar o papel do ocidental alvissareiro que anuncia a pólvora aos chineses, proponho-me a descrever minha recente descoberta sem eufemismos e com toda a clareza que me seja permitida. Descobri, assim sem mais, que não sou um. Sou vários. Sempre pensei que eu poderia ser várias pessoas e, em termos psicanalíticos, diria que sempre me soube capaz de assumir diversas personas em circunstâncias diferentes. Mas o que jamais havia podido conceber até aquele momento é que várias pessoas pudessem ser eu, revezando-se em tarefas diurnas e noturnas, sem descanso, aceitando as hercúleas missões do dia-a-dia. Embora suspeitasse havia muito que meus passos soavam um tanto multímodos, foi somente enquanto esperava por Ilda, observando algo distraído meu próprio reflexo na vitrine da loja de calçados, que comecei a compreender. Olhei-me bem na vitrine e não me reconheci. Não digo um reconhecimento físico ou fisionômico, era meu corpo, bem o sabia, meu rosto e meus olhos que me devolviam a chama que desprendiam sobre o luzente vidro. Como num flagrante único, percebi que ele (eu) descansava e preparava-se para deixar-me, a troca devia ser rápida, mas por um descuido, desses que se justificam em 35 anos de intenso labor, não esperou que voltasse a cabeça para a rua. Talvez seu descuido era proporcional a minha habitual distração. Pouco observador, poderiam trocar-me o manequim do escaparate que não o notaria. Desta vez, porém, o seu (meu) descuido foi demasiado perceptível, suspeito que outros transeuntes talvez o tenham notado, mas logo enterrado no imenso buraco negro do “não visto” à falta de maiores certezas. Eu mesmo estive bastante tentado a fazê-lo, não fosse o fato de sair instantes depois da mesma loja com um “sapatênis” que até aquele momento me parecera espantoso. Somente o estado de atenção alterado despertado pelo seu (meu) gesto descuidado no reflexo da vitrine me permitiria observar tal discrepância de sentimentos em relação ao calçado. A partir de então, cada gesto dele (meu) passaria a ser rigorosamente vigiado. Não me surpreenderia, por exemplo, ao desfrutar de uma salada de mozarela de búfala ricamente temperada com azeite de oliva no Sal Doce naquele mesmo dia. O azeite de oliva era, no mais das vezes, intragável para meu gosto. Nunca cheguei a saber quem é o responsável pelas contínuas trocas de turnos, não chegara a tanto minha incipiente descoberta, mas caso o soubesse, encaminhar-lhe-ia uma veemente reclamação, pois julgo, em meu metódico entender, que haveria de ter mais cuidados no recrutamento para evitar semelhantes discrepâncias, um eu ao fim de tarde jamais poderia deliciar-se, como o fazia agora, com uma porção de mozarela temperada com azeite de oliva. Desconfio, porém, que estes sujeitos não se permitem deixar qualquer ponto sem seu devido nó, e se descuidam de um aspecto tão vital, têm lá seus motivos. Provavelmente a população humana atingiu índices tão elevados, cinco bilhões mais os chineses, que a rotatividade requer contingentes desproporcionais e não se podem ater a detalhes tão olivais para designar as prementes funções. Ou, então, fiam-se tanto de nossa apoucada atenção, tão comprometida com os afazeres cotidianos que se despreocupam em relação a picuinhas mais prosaicas. Tendo a crer, contudo, que a dimensão do contingente parece ser a mais razoável das hipóteses, pois não são amadores, já o dissemos, e se Ilda, ao meu lado, não se espantou com minha escolha pela mozarela de búfala, certamente se devia a uma perfeição matemática que combinava o par Ilda-Eu com inexaurível precisão. Ilda naquele momento era a Ilda habituada a sua (minha) preferência por azeite de oliva. Se lembrarmos, no entanto, que as relações podem envolver mais pessoas que um casal entediado no fim da tarde, comendo mozarela de búfala – poderia ser um grupo de estudos com cinco alunos, que se dirá de uma festa com inúmeros convidados, penetras e até chineses – poderemos conceber a monstruosidade da lógica combinatória que requer a organização de tais plantéis.
Ilda não se espantou com meu pedido e isto apenas confirmava minha descoberta. Não havia nada a fazer a não ser espreitar por novos descuidos, quem sabe eu poderia interpelar um deles (eu) num desses percalços, bastava muita atenção, e saber mais a respeito. Chegamos a casa e nem o banho quente foi capaz de desfazer o nó em meus ombros: era necessária muita atenção. O lado positivo era o cansaço; exaurido pelas atividades normais do dia-a-dia e com a tensão provocada pela contínua vigilância, não seria fácil dormir. Bastaria apagar a luz, proceder aos habituais boas-noites, virar-se para o lado oposto, fechar os olhos e deixar girar um instante a mente. Bastaria, mas não bastou. Apesar de todo aquele cansaço, meu corpo resistia a dormir, sentia-se enérgico e eu, tão esgotado. Exigia que me levantasse, o que não era de se espantar, ele (eu) acabava de chegar a seu turno, decerto enquanto fechava os olhos sob a água do chuveiro ou ao deitar-me e apagar a luz.

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